Crise econômica e sustentabilidade das organizações do terceiro setor

Fabio Ribas
30/03/2016

O agravamento da crise econômica do país começa a afetar as condições de sustentabilidade das organizações do terceiro setor.

Reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo aponta que organizações dessa natureza, localizadas em São Paulo, estão sofrendo com a queda nas doações de pessoas físicas e jurídicas. Segundo a matéria, a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), que realiza 1,39 milhão de atendimentos em todo o Brasil, teve queda de 30% das doações neste ano, que representam 30% das receitas anuais da entidade. A matéria cita outros exemplos. A APAE-SP estuda reduzir, em 2016, projetos que não sejam de atendimento direto. E a ONG Futurong, que atua na zona sul da cidade de São Paulo, demitiu 20% dos seus funcionários e congelou seu plano de expansão de atendimentos.

Em tempos de crise, mais do que nunca as organizações do terceiro setor precisam priorizar a gestão de sua sustentabilidade. Para tanto, precisam compreender que a sustentabilidade decorre da existência de um plano estratégico consistente, que deve contemplar as várias dimensões e significados do trabalho que realizam.

Assim, por exemplo, ao lado de uma boa prática interna de controle dos gastos, as organizações precisam avaliar se possuem uma missão claramente definida, compartilhada por todos os seus colaboradores e adequadamente comunicada às partes interessadas em suas ações e ao conjunto da sociedade.

Precisam, também, demonstrar a qualidade das metodologias que empregam para o atendimento de seus públicos, alinhando-se aos estudos, normas técnicas e planos nacionais existentes em suas respectivas áreas de atuação e, até mesmo, indo além desses marcos para propor inovações necessárias para uma atuação mais efetiva e resolutiva junto a segmentos diversos da população ou em territórios específicos que muitas vezes não são adequadamente alcançados pelas políticas governamentais oficiais.

Em especial, as organizações do terceiro setor devem se perguntar se a sociedade está sendo periodicamente informada sobre os resultados alcançados pelos serviços e programas que oferecem à população. Por exemplo, uma organização que atue na garantia de direitos das crianças e adolescentes precisa buscar demonstrar, de forma transparente, o volume e o perfil do público que atende a cada ano, a parcela desse público que deixou de sofrer violências, que teve sua vulnerabilidade reduzida, que está mantendo e melhorando sua vida escolar, e assim por diante. E, ao mesmo tempo, precisa divulgar os recursos financeiros que a ajudaram a gerar esses resultados, com o que se torna possível uma avaliação do custo-efetividade de suas ações.

Fatores como esses serão cada vez mais decisivos para a manutenção ou não da continuidade do apoio às organizações sociais por parte dos doadores, assim como para a ampliação das parcerias entre essas organizações e os governos. É claro, porém, que a estruturação de uma estratégia avançada de sustentabilidade representa grande desafio para a maioria das organizações. Como afirma o gestor da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e a Adolescência, em entrevista concedida ao site Movimento Nacional de Direitos Humanos: “É possível profissionalizar a equipe até certo ponto. E isso é importante. Mas há dificuldade em conseguirmos profissionais qualificados em todas as áreas. Conseguimos atrair muita gente boa para a parte programática da ONG, para atuar em suas atividades-fim, mas para a parte administrativa, por exemplo, é mais difícil. Poucas organizações têm como pagar os salários de mercado para bons profissionais de administração.” Essa associação, que prestava serviços de atendimento e denúncia contra a exploração sexual infantil, e organizava campanhas contra o bullying, encerrou suas atividades em 2015 por dificuldades financeiras.

Antonio Carlos Gomes da Costa, que em vida colaborou intensamente para o fortalecimento das políticas públicas de garantia dos direitos de crianças e adolescentes, disse certa vez que uma organização ideal seria aquela que conseguisse reunir o que há de melhor em três setores da vida social: a universalidade dos direitos e a igualdade de todos perante a lei, que caracterizam o Estado Democrático de Direito (primeiro setor); a eficiência, a eficácia e a efetividade na gestão de processos, que caracterizam as empresas privadas (segundo setor); a motivação e o espírito de luta na promoção do bem comum, que caracterizam as organizações sem fins lucrativos da sociedade civil (terceiro setor).

As organizações do terceiro setor conseguem atender territórios e públicos muitas vezes não alcançados pelo Estado; por outro lado, nem sempre conseguem integrar suas ações às ações do Estado de forma efetiva; possuem um grau de motivação e empreendedorismo para atuar em suas causas muitas vezes ausentes nos quadros de pessoal das empresas privadas; por outro lado, encontram dificuldade para adaptar de forma adequada aos seus valores e às suas ações sociais os procedimentos de gestão e controle empregados nas empresas privadas.

ONGs e entidades sociais sem fins lucrativos trazem uma nova possibilidade de desenvolvimento para a sociedade: são privadas, mas têm finalidade pública. Questionam a rigidez da divisão da sociedade entre Estado e Mercado e apontam para a necessidade da construção de sociedades mais justas, equilibradas e sustentáveis. Num tempo de crise como o que vive atualmente a sociedade brasileira, sua participação no cenário público é indispensável para que as populações mais vulneráveis possam fortalecer seus meios de subsistência.

Para um enfoque adequado das perspectivas de sustentabilidade das organizações sociais, é interessante refletir sobre os conceitos opostos de dependência e autosustentação.

A dependência é uma situação conhecida das entidades sociais que sentem ter pouco ou nenhum controle sobre os recursos que determinam sua ação. É a situação caracterizada pela heteronomia, ou seja, a falta de liberdade de agir pela falta de controle sobre as variáveis externas. O exemplo mais claro é o da instituição que perde o vínculo com seu único ou mais importante patrocinador e se percebe despreparada para continuar subsistindo sem esse apoio.

Em contraposição, o conceito de autosustentação sugere a possibilidade de reversão completa da dependência. Nesta situação as organizações sociais seriam capazes de gerar por suas próprias forças todos recursos de que necessitam. O modelo que vem à mente é o da realização de projetos próprios de geração de renda ou de prestação de serviços. No entanto, no mais das vezes é muito difícil, senão impossível, para as organizações sociais transitar de uma situação de dependência para uma situação de autosustentação.

Um conceito mais interessante, que ajuda a superar a oposição entre dependência e autosustentação, é o da gestão da sustentabilidade. Mais além do constrangimento da dependência ou da ilusão de autonomia econômica, sustentabilidade tem a ver com a capacidade de articular alianças e parcerias geradoras de recursos para que as organizações do terceiro setor cumpram finalidades públicas que beneficiam a coletividade. Tem a ver, também, com o aumento da capacidade das organizações para utilizar os recursos com maior competência, intervindo de forma mais eficiente e eficaz na realidade e sendo mais capazes de solucionar problemas sociais que interessam a todos os parceiros. A gestão bem-sucedida da sustentabilidade também envolve, como indicado anteriormente, o desenvolvimento da capacidade de comunicação das organizações sociais com todos os seus parceiros atuais e potenciais, bem como uma maior capacidade de dar visibilidade às ações e aos resultados obtidos com os recursos investidos.

No programa personalizado de capacitação sobre Sustentabilidade do Terceiro Setor, ministrado pela Prattein para organizações do terceiro setor, a primeira atividade é uma autoavaliação que as organizações realizam sobre suas condições de sustentabilidade. Para tanto, elas respondem um questionário de 20 itens (disponível para download no final deste texto) que abordam os eixos básicos de sua atuação institucional: planejamento (missão, visão de futuro, valores), imagem e comunicação, gestão de pessoal, vínculos e parcerias com os diferentes setores da sociedade, controle orçamentário, gestão das fontes de recursos.

De posse de um diagnóstico centrado nessas dimensões básicas, os membros das ONGs podem delinear e monitorar a implantação de planos de sustentabilidade abrangentes, que não se reduzam apenas a esforços isolados de busca de recursos financeiros, mas que deem visibilidade aos valores, ações, resultados e perspectivas de mudança que dão sentido efetivo à existência dessas instituições.

Acesse aqui matéria da Folha de São Paulo – Crise econômica afeta doações a entidades assistenciais em São Paulo

Acesse aqui matéria do site Movimento Nacional de Direitos Humanos – Mais uma Ong fecha as portas

Acesse aqui questionário para autoavaliação da sustentabilidade das organizações do terceiro setor