Avanços na educação brasileira dependem da articulação entre políticas setoriais

Fabio Ribas
16/07/2015

Pesquisas nacionais e internacionais deixam claro o que deve ser feito para que as escolas e os sistemas de ensino funcionem a contento e promovam o aprendizado e o desenvolvimento dos alunos. O problema é que muitos fatores precisam ser manejados e gerenciados ao mesmo tempo para que as melhorias aconteçam e os resultados sejam significativos.

Um dos fatores cruciais, especialmente em países que, como o Brasil, são marcados pela desigualdade social e pela diversidade de condições de operação dos serviços públicos nas regiões e municípios, é a existência de relações de cooperação entre as políticas setoriais. As escolas têm cada vez mais dificuldades para ensinar e promover o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, especialmente aqueles que vivem em comunidades e famílias vulneráveis, que convivem com variadas formas de violência. Nesses contextos, muitas escolas chegam a ser denominadas pelos próprios gestores públicos como “escolas de risco”. Ocorre que os fatores de risco que podem impor limitações à trajetória escolar de crianças e adolescentes estão presentes em um número cada vez mais amplo de territórios e espaços urbanos e rurais, e não apenas naqueles tipicamente considerados como regiões críticas.

Depoimento da diretora de uma escola pública situada nas proximidades do Jardim Ângela, na cidade de São Paulo (um bairro que registra frequentemente situações de violência, mas no qual instituições públicas e ONGs buscam novos caminhos de ação) expressa de forma clara essa situação. Disse ela: “Escola só dá certo se lida com os problemas ao redor.” Segundo matéria publicada no jornal Folha de São Paulo em 29/11/2014 (da qual foram extraídos o depoimento acima e os outros apresentados a seguir), na escola dirigida por essa diretora “o ambiente é permeável à comunidade: vizinhos entram e saem da escola a todo momento, inclusive para comer; moradores de rua e dependentes de drogas são recebidos no refeitório da mesma maneira que os alunos, funcionários e professores.” Alguns jovens que frequentam essa escola do Jardim Ângela cometeram atos infracionais e passaram por um período de internação para cumprimento de medida socioeducativa aplicada pelo Poder Judiciário. Referindo-se a esses alunos, diz a diretora: “Estamos concorrendo com um mundo violento, no qual ganhar dinheiro é muito fácil.” Quando recebe esses e outros tipos de alunos moradores da região de risco, a diretora faz para eles a seguinte pergunta: “Qual seu sonho?” Segundo ela, a resposta mais frequente é “nenhum”. Mas, com a continuidade do diálogo, “meses depois aparecem sabendo o que querem”, completa a diretora.

O depoimento dessa diretora deixa claro o quanto o trabalho das escolas precisaria ser apoiado por ações de outras políticas setoriais (assistência social, saúde, cultura, esportes, trabalho e renda, segurança, etc.) para que possa ter mais chances de sucesso.

O princípio da articulação intersetorial já foi reconhecido em vários marcos legais e planos governamentais, e vem sendo reafirmado em documentos recentes. Assim é que o Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2014-2024 (instituído pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014), afirma que o alcance das metas de melhoria do acesso, da permanência e do aproveitamento das crianças e adolescentes na escola depende, entre outros fatores, da existência de ações conjuntas entre as áreas da assistência social, da saúde e da educação. Aponta, também, que uma boa integração entre essas áreas pode favorecer a redução de problemas que limitam a trajetória escolar da população infanto-juvenil, especialmente aquela parcela pertencente aos segmentos mais vulneráveis da população, que são beneficiários dos programas de transferência de renda.

Um desafio para a melhoria da educação brasileira, cujo enfrentamento depende da existência de uma adequada articulação entre políticas setoriais, é a redução da tendência à evasão escolar entre a população de 15 a 17 anos, que é significativamente maior que a registrada em outras faixas etárias.

Nesse sentido, entre as estratégias propostas pelo PNE para buscar a universalização do atendimento escolar para a população de 15 a 17 anos, está o acompanhamento do acesso e da permanência no ensino médio dos jovens beneficiários de programas de transferência de renda. Esse acompanhamento deve focalizar, segundo o PNE, a frequência, o aproveitamento escolar e a interação dos adolescentes com o coletivo, bem como as situações de discriminação, preconceitos e violências, práticas irregulares de exploração do trabalho, consumo de drogas e gravidez precoce.

O PNE afirma que tal acompanhamento deve contar com a colaboração das famílias e dos órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à adolescência e juventude. Outra ação apontada no PNE como necessária é a busca ativa dos adolescentes que estejam fora da escola – tarefa que também pressupõe a cooperação entre as escolas e os serviços de assistência social, saúde e proteção à adolescência e à juventude.

Tal tipo de cooperação também está previsto nas normativas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Entre os princípios que devem regular a chamada Gestão Territorial da Proteção Social Básica (tarefa a cargo das Secretarias de Assistência Social) estão a promoção da articulação intersetorial e a busca ativa.  Além disso, um dos serviços previstos na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais é o Serviço Especializado em Abordagem Social. Segundo a normativa do SUAS, esse serviço deve ser ofertado nos municípios pelas Secretarias de Assistência Social de forma continuada e programada, envolvendo um trabalho de abordagem e busca ativa que identifique nos territórios a incidência de problemas que atingem crianças e adolescentes, tais como trabalho infanto-juvenil ilegal, exploração sexual e situação de rua, que geram, entre outras consequências negativas, limitações na trajetória escolar ou evasão escolar. Se for operado em sintonia com as escolas públicas, esse serviço socioassistencial pode contribuir de forma significativa não apenas para interromper violências, mas também para promover o encaminhamento de crianças e adolescentes às demais políticas setoriais, entre as quais a educação.

Raciocínio semelhante pode ser feito para o Programa Saúde da Família, cujos agentes podem atuar em sintonia com as escolas e os serviços socioassistenciais para identificar e promover ações protetivas contra problemas que afetam a saúde dos adolescentes e limitam sua trajetória escolar, tais como o uso de substâncias psicoativas por parte de familiares ou dos próprios adolescentes. Se pensarmos na violência e na criminalidade presentes nas comunidades de risco, no entorno ou mesmo no interior de muitas escolas, a articulação e a cooperação mais intensas entre as escolas e a segurança pública também é vital.

Outro desafio para a melhoria da educação brasileira, cujo enfrentamento depende da existência de uma adequada articulação entre as escolas e os serviços socioassistenciais, é a criação de condições que viabilizem a oferta da educação integral (e em tempo integral) para crianças e adolescentes.

Nesse sentido, Plano Nacional de Educação, em sua meta 6, afirma a necessidade da oferta de educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos alunos da educação básica.

Antes do Plano Nacional de Educação, o Programa Mais Educação (instituído pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e detalhado pelo Decreto nº 7.083/2010), já havia definido a educação em tempo integral como a jornada escolar com duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período letivo, compreendendo o tempo total em que o aluno permanece na escola ou em atividades escolares oferecidas em outros espaços educacionais.

O Programa Mais Educação estimula a adoção da educação integral sob a forma de jornada ampliada. Busca promover a melhoria da aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens matriculados no ensino fundamental de escolas públicas, por meio da multiplicação da oferta de atividades de acompanhamento pedagógico, experimentação e investigação científica, cultura e artes, esporte e lazer, cultura digital, educação econômica, comunicação e uso de mídias, meio ambiente, direitos humanos, práticas de prevenção aos agravos à saúde, promoção da saúde e da alimentação saudável, entre outras. Segundo o Decreto que detalhou o programa, essas atividades poderão ser desenvolvidas dentro do espaço escolar, de acordo com a disponibilidade de cada escola, ou fora dele sob orientação pedagógica da escola, mediante o uso dos equipamentos públicos e do estabelecimento de parcerias com órgãos ou instituições locais.

Buscando promover a concretização dessas parcerias e, desta forma, ampliar a oferta de educação integral, o Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério da Educação lançaram, em dezembro de 2014, a Instrução Operacional nº 01, que orienta gestores e profissionais das áreas da assistência social e da educação a efetivar a integração entre os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV), que são oferecidos pelas Secretarias Municipais de Assistência Social, e as escolas públicas, cuja atuação deve ser orientada pelo Programa Mais Educação.

Segundo essa Instrução Operacional, os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos possuem características que favorecem a oferta de ações complementares, de caráter cultural, lúdico, social e educacional, a um público de crianças e adolescentes que é atendido tanto pelas políticas de assistência social quanto pelas escolas públicas.

A Instrução Operacional afirma que as parcerias entre as escolas e os SCFV não devem se limitar à simples inclusão de estudantes beneficiários do Programa Bolsa Família nos espaços que oferecem atividades no contraturno escolar, mas devem ser desenvolvidas de modo a promover o fortalecimento das relações intersetoriais entre educação e assistência social. Juntas, as escolas e os serviços socioassistenciais devem também articular a participação de áreas como cultura, esporte, meio ambiente, ciência e tecnologia e juventude, ampliando assim as condições de proteção, apoio e garantia dos direitos dos sujeitos e de suas famílias.

Em suma, os planos e orientações mencionados reafirmam a indiscutível importância da articulação entre políticas setoriais para o enfrentamento de problemas que restringem a vida escolar e o desenvolvimento integral das crianças e adolescentes. Cumpre agora verificar em que medida essas normas estarão sendo concretizadas na prática, acompanhar o processo de sua implantação e identificar dificuldades e caminhos que precisem ser considerados para que os avanços desejados se concretizem.

Num país com a tradição política e cultural do Brasil, a criação de normas é condição necessária, mas via de regra insuficiente, para que mudanças na realidade aconteçam. São muito comuns situações em que a distância entre os marcos normativos e os fatos cotidianos é muito grande. A formulação de planos que reafirmam princípios e metas já declarados em planos anteriores, mas todavia não concretizados, é frequente. Um exemplo é a própria meta de universalização da educação em tempo integral, estabelecida no Plano Nacional de Educação para o período 2014-2024: consultando a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que naquele ano estabeleceu as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, verificamos que o artigo 87, § 5º dessa lei afirmava que, doravante, seriam conjugados todos os esforços objetivando a progressão das redes escolares públicas urbanas de ensino fundamental para o regime de escolas de tempo integral.

Quase 20 anos após a valorização da educação em tempo integral pela Lei 9.394/1996, é tempo de articular esforços que efetivamente promovam esse avanço cada vez mais necessário. Para tanto, um dos fatores decisivos será o aprimoramento dos mecanismos de gestão das políticas setoriais, que deverão ser repensadas e reorganizadas para atuar de forma colaborativa.

Acesse:
Plano Nacional de Educação 2014-2014
Tipificação dos Serviços Socioassistenciais
Programa Mais Educação
Instrução Operacional: integração entre os Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e as escolas públicas