Violências dissimuladas: desafios para a proteção de crianças e adolescentes

Saulo Cunha
07/12/2015

Uma história real

De quando em quando, deparamo-nos com obras por meio das quais os autores expõem deliberadamente suas vidas ao mundo. É o que faz a americana Margaux Fragoso quando relata no livro “Tigre, Tigre” sua vivência com um pedófilo, que se arrastou por quinze anos. Foi a “esperança de entender o que aconteceu”, diz ela, que a levou a relatar aquilo que ela chama de relação com um homem quarenta e quatro anos mais velho.

Margaux era filha única de um casal que vivia permanentemente em conflito. Seu pai não hesitava em demonstrar sua insatisfação com a esposa, esbravejava e tornava-se agressivo. Sua mãe sofria com distúrbios psiquiátricos, passava a vida sob efeito de medicação e, por vezes, internada. A família vivia sob tensão.

Foi aos sete anos que Margaux conheceu Peter, então com cinquenta e um anos, em uma piscina pública de sua cidade. Ele brincava na água com seus dois filhos. “Ele sorriu para mim, a cara cheia de rugas – na testa, nos olhos e em volta do queixo. Eu sabia que ele devia ser velho para ter rugas, cabelo branco e a pele frouxa no pescoço, mas ele tinha tanta energia e brilhava tanto que não parecia velho. Nem parecia adulto, no sentido daquele distanciamento que os adultos mantêm das crianças”. Margaux atravessou a piscina e perguntou: “Posso brincar com você?”.  “Claro que sim”, ele respondeu. Neste momento teve início a história que se desdobrou por quinze anos.

Acompanhada por sua mãe, Margaux passou a frequentar a casa de Peter, que morava com a mulher e os filhos. Como seu casamento já tinha naufragado, ele ocupava um dos cômodos da casa. Foi nesse canto do sobrado e em outros pouco frequentados pelos moradores que ele construiu um mundo habitado apenas por ele e Margaux. Atento às necessidades dela, providenciava tudo para cativá-la. Brincava como um menino; fotografava-a; levava-a para passear em sua moto e para comer em lanchonetes e restaurantes. Ela ficava encantada com a atenção desse homem que a entendia tão bem e que tanto prazer lhe proporcionava. O que ela mais queria era passar o maior tempo possível em sua companhia. Seu pai, à distância, achava tudo estranho, mas não fazia intervenção alguma. Apesar de esbravejar, achava bom manter-se afastado da mulher e da filha.

A forma como os pais de Margaux agiam, e o encantamento dela por Peter, ajudavam-no a ganhar terreno. Se por um lado ele desdobrava-se para agradar Margaux, de outro insistia em abraçá-la, em beijá-la e sugeria que ela se despisse para brincar de esconde-esconde. Quando ela tinha oito anos, passou a propor-lhe algumas formas de sexo.  Margaux não entendia o que estava acontecendo e bastante atrapalhada tentava achar uma saída, mas se via enroscada numa confusão de sentimentos. Tinha muito receio de decepcionar Peter e de perdê-lo. Os pedidos dele eram feitos em meio a uma atmosfera de dedicação, carinho e chantagem. “Você acha que meu corpo é nojento. Você não gosta de mim porque sou velho. Você me acha feio”, disse-lhe uma vez. Argumentos desta natureza ameaçavam-na, pois, descontente, ele poderia abandoná-la.

A situação só fez agravar-se. Margaux passou a sentir-se portadora de um segredo que a tornava diferente das outras meninas. Quando na adolescência as garotas falavam de seus namorados, ela dizia que também tinha um, mas não revelava sua identidade. Tinha vergonha de ser vista na companhia de um homem velho como Peter, mas sentia-se confortada por tê-lo em sua vida. Aos poucos, Margaux foi submetendo-se aos jogos sexuais propostos por ele.

A autora não poupa esforços para contar a forma como se manteve ligada a este homem até os vinte e dois anos. Nessa altura, ele suicidou-se aos sessenta e seis.

Seu relato demonstra claramente como os distúrbios de sua família deixaram-na carente e desprotegida, tornando-a presa fácil de um homem que apresentava distúrbios na formação de sua personalidade.  Em busca de atenção, de segurança e de afeto ela submeteu-se à violência psicológica e sexual. O abuso sexual, neste caso, não tinha a estridência de um estupro. Ao contrário, era camuflado por atenção, carinho, ameaças sutis e argumentos que a deixavam confusa.

– Minha mãe … disse uma vez que ninguém deve tocar minhas partes privadas. Ninguém deve tocar meu bumbum também. Mas acho que não concordo – eu disse apressadamente. – Meus pais são reprimidos.

– Tá brincando! – Exclamou Peter, parecendo ainda mais animado. – Pense numa sociedade que é tão imbecil que você tem essas partes intocáveis e são as mesmas que por acaso geram o maior prazer, e todo mundo leva uma lavagem cerebral para acreditar que é perfeitamente normal julgá-las nojentas e erradas. E pensar que essas pessoas baixam as calças de seus filhos para espancá-los e dizem aos filhos que ninguém deve nem mesmo vê-los de calças arriadas.

Os títulos de alguns capítulos revelam a distorção promovida por Peter: “Só se você quiser”; “Não é errado amar você”; “Nosso segredinho”.

Violências sexuais: definições e normas legais

No que diz respeito à violência sexual, cabe distinguir três de suas manifestações: abuso sexual, exploração sexual e pedofilia.

Abuso sexual ocorre quando crianças ou adolescentes são usados por adultos ou adolescentes para satisfazer suas necessidades sexuais. Isso pode ocorrer tanto no interior das famílias como fora delas. Libório e Castro (2010) destacam que o abuso pode envolver relação sexual, o toque, a exposição de órgãos genitais e material pornográfico ou conversas com conteúdo sexual de forma erótica.

A exploração sexual ocorre quando ao utilizar-se de crianças de adolescentes para satisfazer suas necessidades sexuais, pessoas mais velhas pagam por isto a alguém. Cometem também exploração aqueles que aliciam crianças e adolescentes e oferecem-nas para pessoas mais velhas que queiram com elas praticar algum tipo de atividade sexual. Em suma, nesta forma de expressão da violência sexual a utilização do corpo da criança e do adolescente gera lucro financeiro para alguém.

A pedofilia, por sua vez, é uma forma de violência sexual praticada por aqueles que se sentem fortemente atraídos sexualmente pela aparência infantil.

Libório e Castro (2010) afirmam que nem todo abusador sexual de crianças e adolescentes é um pedófilo, da mesma forma que nem todo pedófilo é um abusador sexual. Há quem cometa abuso sexual, mas não se sinta impulsionado por um forte e contínuo interesse em crianças. Por sua vez, há pedófilos que não tiveram contato sexual com crianças, que conseguem conter o seu desejo sexual. Os dois autores afirmam que, conforme Seto (2008), pedófilo que comete abuso sexual é chamado de abusador sexual pedófilo. Já o indivíduo não pedófilo que abusa sexualmente de crianças é chamado de abusador sexual não pedófilo. Esse último pode cometer abuso por razões como tendências antissociais, desinibição devido ao uso de álcool e outras drogas, valores culturais entre outros.

Pelo exposto acima, conclui-se que Peter era um abusador sexual pedófilo, pois sentia-se atraído sexualmente por Margaux e impingiu-lhe violências sexuais de naturezas diversas.

As violências cometidas por Peter contra Margaux ficavam dissolvidas na atmosfera de companheirismo, compreensão, brincadeiras e das tantas outras atividades prazerosas. Para violentá-la, ele nunca usou força física.  Era sempre o receio de ser abandonada por Peter e de perder tudo o que ele lhe proporcionava que a faziam submeter-se aos seus jogos sexuais, que ela não compreendia e que a deixavam atrapalhada. As violências ficavam assim silenciosas e dissimuladas. A satisfação de Peter misturava-se ao seu temor de ser denunciado ou flagrado violentando uma criança e ser preso novamente. Ele revelava seu temor à Margaux e procurava fazer com que essas situações se reduzissem a um segredo só deles. Às vezes, ela ameaçava romper o conluio, mas logo se dava conta do que perderia com isso.

Como afirma Libório (2010), o abusador “nem sempre utiliza força física ao cometer o abuso sexual, pois pode induzir, coagir ou pressionar a vítima a obedecer-lhe” (Ungaretti, 2010, p.25).

O fato de um indivíduo sentir-se atraído sexualmente por crianças e adolescentes não constitui crime. Se ele não praticar nenhum tipo de abuso, ou seja, se ele lidar com seu desejo no mundo da fantasia, ele não pratica crime. Todavia, se ele cometer algum tipo de abuso sexual com crianças e adolescentes, ele comete ação criminosa. O Ministério Público Federal (MPF) esclarece que “A pedofilia em si não é crime, no entanto, o código penal considera crime a relação sexual ou ato libidinoso (todo ato de satisfação do desejo ou apetite sexual da pessoa) praticado por adulto com criança ou adolescente menor de 14 anos. Conforme o artigo 241-B do ECA é considerado crime, inclusive, o ato de ‘adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente’ ” (Site Turminha do MPF / O que é pedofilia?).

Por não ser crime, a pedofilia não está tipificada na legislação brasileira. Como lembra o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), os abusos cometidos por pedófilos são contemplados no seguinte artigo do Código Penal Brasileiro, que trata de Estupro de Vulnerável: Art.217-A – Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Neste caso, a pena de reclusão é de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. Se houver lesão corporal de natureza grave a pena varia de 10 (dez) e 20 (vinte) anos. Se a conduta resultar em morte a pena de reclusão varia de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

Como indica o MPMG “A lei refere-se àqueles que são vulneráveis, ou seja, pessoa menor de 14 anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem a compreensão ou o discernimento necessário à prática de ato sexual, ou, por qualquer outra causa, não pode opor resistência” (MPMG / Cartilha Todos Contra a Pedofilia).

A importância do papel protetivo da família

Vale esmiuçar um pouco a situação da família de Margaux para compreender como ela pode ter contribuído para essa longa história de pedofilia.

A família era pequena, formada por Margaux, seu pai e sua mãe. A única pessoa da família extensa citada com algum destaque no livro é uma tia materna de Margaux, que era distante e considerada esnobe pelo pai. Ele era estrangeiro e não há menção no livro à ligação dele com seus parentes. Também não há referências a eventuais amigos da família. Dessa maneira, os três viviam isolados. Para piorar, o clima da casa era sempre tenso. O pai de Margaux não gostava do lugar onde morava, queixava-se dos trabalhos que arranjava e sentia-se incompreendido por sua mulher e sua filha. Incomodava-se com a presença delas e explodia constantemente. Sua mãe vivia à base de medicação psiquiátrica e de tempos em tempos era internada.  O pai de Margaux achava que sua mulher devia permanecer hospitalizada e procurava convencer a filha do quanto isso seria melhor para eles.  A internação soava como um meio de ele livrar-se dela. Dentro da casa, os três quase não se falavam. Quando o faziam, culpavam uns aos outros pela situação em que viviam e agrediam-se verbalmente. Não havia comunicação entre eles. Aos poucos, os três foram encontrando meios de minimizar sua convivência na casa e passaram a viver cada vez mais isolados em cômodos diferentes.

É fácil perceber que Margaux, uma criança, não podia confiar em seu pai, que se mostrava instável e explosivo, nem em sua mãe, que se mostrava instável e muito frágil. Assim, se viviam isolados, em quem ela poderia confiar?

O psicanalista inglês Donald W. Winnicott lançou luz sobre a importância do ambiente familiar no processo de amadurecimento pessoal dos seres humanos, que vai da dependência absoluta à independência relativa.

Para Winnicott, o bebê nasce absolutamente dependente do ambiente, representado quase sempre pela mãe. A satisfação de suas necessidades é realizada pelo ambiente, que se adapta às suas necessidades. Todavia, como ele não sabe da existência do ambiente, tem o “sentimento” de que cria os meios pelos quais suas necessidades são satisfeitas. Para exemplificar, quando é tomado pela fome, o bebê leva a boca em direção a algo. Se a mãe, identificada com a necessidade dele, oferece-lhe o seio, ele tem o sentimento de tê-lo criado. Este é o estágio da Dependência Absoluta. Por volta dos seis meses de idade, o bebê começa a distinguir o eu do não-eu e isso ocorre principalmente pelo desenvolvimento da mente do bebê, que permite que a mãe vá aos poucos desadaptando-se e falhando gradualmente no atendimento de suas necessidades. Agora, quando tomado pela fome, por exemplo, o bebê começa a se dar conta de que existe algo além dele que promove sua satisfação. Aos poucos, ele vai sabendo que a mãe é necessária. Esse estágio, chamado de Dependência Relativa, perdura até mais ou menos os dois anos de idade.   Quando os dois primeiros estágios de dependência foram atravessados satisfatoriamente, o bebê passar a ter um mundo interno (separado do ambiente) bastante sólido baseado em suas próprias experiências. Esse estágio, chamado de Independência Relativa, perdurará para o resto da vida. Isso porque ninguém chega a alcançar uma completa independência.

O relato de Margaux inicia-se quando ela contava com sete anos de idade, de maneira que não sabemos como era o ambiente familiar dos primórdios do seu desenvolvimento, quando ela dependia absolutamente do ambiente, ou seja, de sua mãe. Há casos de mulheres que, apesar de suas dificuldades emocionais, conseguem adaptar-se às necessidades de seus bebês, facilitando assim o seu desenvolvimento inicial. Isso pode ter ocorrido à mãe de Margaux. Seu relato não sugere que ela tenha desenvolvido alguma defesa por conta de falhas ambientais graves ocorridas logo no início de seu desenvolvimento. Talvez essas falhas tenham afetado o seu processo de amadurecimento a partir do momento em que ela foi deixando o estado de indistinção com sua mãe e entrando no estado de ser um indivíduo separado. Ela destaca que aos sete anos, quando possivelmente estava caminhando rumo à independência relativa, seu ambiente familiar era instável, conflituoso e inseguro. Diz Winnicott: “Creio que a família é a única entidade que possa dar continuidade à tarefa da mãe (e depois também do pai) de atender às necessidades do indivíduo. Tais necessidades incluem tanto a dependência como o caminhar do indivíduo em direção à independência” (Winnicott, 1993, p.131).

Em outras palavras, a família tem papel fundamental durante todo o processo de desenvolvimento do indivíduo, que perpassa a infância, a adolescência e a fase adulta. O que varia nas diferentes fases é a natureza das necessidades. A criança necessita sentir que, apesar de tudo que ela faça, a família é indestrutível. Precisa sentir que ela a acolhe no seu ir e vir entre os momentos de dependência e aqueles nos quais se rebela para estabelecer sua própria identidade. Em suma, precisa sentir que sua família é confiável. No seu relato, Margaux deixa claro que as condições de sua família de oferecer-lhe um ambiente seguro eram precárias. E isso constituía uma brecha por onde poderia entrar alguém que como Peter criava uma atmosfera de atenção e cumplicidade, procurando satisfazer suas necessidades e tentando estabelecer um ambiente confiável. Não à toa, sempre que podia Peter afirmava para Margaux que seus pais não ofereciam o que ela necessitava. Já ele fazia de tudo para levá-la a crer que a protegia. Era necessário apenas, dizia ele, que um confiasse no outro.

“Tigre, Tigre” fala de uma família com problemas graves, que não diziam respeito a fatores materiais, mas a fatores emocionais. A experiência tem mostrado que quando as razões das tensões familiares são causadas por fatores materiais, como, por exemplo, a falta de dinheiro para aquisição de itens indispensáveis à sobrevivência, a situação se tranquiliza quando essa carência é suprida. Todavia, a situação só faz agravar-se quando as razões estão relacionadas a fatores emocionais.

Ao elencar as causas do fracasso do grupo familiar natural em cuidar de uma criança, Bowlby diz: “Outra causa importante para a dissolução do grupo familiar natural é a doença prolongada de um dos pais, internação em hospital (ou em outra instituição, no caso de distúrbios mentais) ” (Bowlby, 1976, p.80).

Ao descrever minuciosamente sua situação, Margaux deixa claro que foi negligenciada por seus pais, mas a negligência a qual se refere é principalmente a de natureza emocional, resultante da instabilidade emocional e da doença mental de seus pais.

O fato de a família não contar com o apoio de parentes e amigos pode ter agravado a situação. “O problema da criança que sofre privação é encontrado, em grau mais elevado, nas comunidades onde o grupo familiar mais amplo deixou de existir” (Bowlby, 1976, p.78).

O surgimento de Peter trouxe ambiguidade para a situação. Margaux e sua mãe encontraram nele um refúgio: sentiam-se compreendidas e protegidas por ele. Ele, por sua vez, tinha como objetivo a satisfação de seus desejos sexuais por meninas.

A omissão dos pais de Margaux favoreceu a exploração dela por Peter. Sua mãe, apesar de presente fisicamente na casa dele, não interferia. Não é possível saber se ela não se dava conta dos fatos, se não se incomodava com o que acontecia ou se achava que aquele era o preço que pagavam pelo refúgio oferecido por ele. Seu pai achava estranhas as atitudes de Peter e questionava sua mulher sobre as intenções dele; chegou mesmo a ouvir comentários desconfiados de conhecidos, mas preferiu não interferir e manter-se afastado.

A situação era complexa e tinha como componentes os distúrbios da família de Margaux e os de Peter, a sedução exercida por ele, a omissão dos pais dela, os segredos e conluios estabelecidos entre Peter e Margaux. As ações eram silenciosas, dissimuladas, cheias de ambiguidades.

A história de Margaux mostra que os profissionais e os serviços de atendimento de crianças e adolescentes devem estar atentos à dinâmica de funcionamento das famílias e, especialmente em casos de maior vulnerabilidade, devem orientar os familiares e responsáveis no exercício do seu papel protetivo.

Mecanismos de proteção: o papel dos cidadãos e das instituições

Se a família não protegia Margaux, cabia à sociedade e ao poder público fazê-lo, já que ela era uma criança. Alguns moradores achavam estranho o fato de Peter estar constantemente acompanhado de uma menina que não era sua filha. Os comentários de alguns deles chegaram aos ouvidos do pai de Margaux. Numa passagem do livro, um preocupado salva-vidas de uma piscina pública procurou a mãe de Margaux para saber quem era o homem que estava com ela na água. A mãe desconversou e o funcionário da piscina deixou o caso para lá. Certo dia, representantes da Justiça foram até a casa de Peter pois suspeitavam que ele estava protagonizando mais um episódio de pedofilia. Nada foi comprovado e tudo ficou como estava. Possivelmente alguém o denunciou.

Na escola, a direção e os professores tinham conhecimento dos conflitos da família de Margaux? Sabiam da doença da mãe dela? Sabiam da existência de Peter? Notavam algo estranho nas atitudes dela?

O hospital para onde a mãe dela era levada e muitas vezes internada tinha algum conhecimento da sua situação familiar?

Evidentemente, a escola e o hospital sozinhos não poderiam resolver os problemas da família de Margaux, pois isso escapava de suas alçadas. Como poderiam então ter contribuído, se é que não o fizeram, uma vez que o livro nada diz sobre isso?

Distúrbios psiquiátricos dos pais desestabilizam as famílias. Afinal, eles são o esteio do grupo familiar. Um serviço médico que receba uma pessoa nessas condições pode, por meio de entrevistas com o paciente, se possível, e com os seus familiares obter informações sobre a dinâmica familiar e, se necessário, acionar serviços da rede de atendimento que possam oferecer suporte para a família, como os de assistência social, por exemplo.

Da mesma forma, se a escola nota sinais de negligência, de violência ou atitudes da criança que levantem suspeita de que algo não vai bem na sua vida fora da escola, pode conversar com os pais para entender a situação e, se necessário, acionar serviços da rede de atendimento como os de saúde, assistência social e, se for o caso, até a Justiça. No Brasil, pode acionar o Conselho Tutelar.

É bem verdade que casos de pedofilia como o que envolveu Margaux não são facilmente identificáveis, pois o violador procura agir com o máximo de discrição, e, além disso cria uma situação de cumplicidade com a criança ou adolescente. Assim, os profissionais precisam juntar pequenos indícios para entender o que de fato está acontecendo e tomar as providencias devidas.

O Item XII do artigo 136 do ECA determina que os Conselhos Tutelares devem “promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em crianças e adolescentes”.

E os artigos 70-B e 94-A do ECA (introduzidos nesse Estatuto em 2014) determinam que as entidades, públicas e privadas, que atendem crianças e adolescentes, ainda que em caráter temporário, devem contar, em seus quadros, com pessoas capacitadas a reconhecer e comunicar ao Conselho Tutelar suspeitas ou casos de maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes.

A rede de atendimento, por sua vez, deve ter condições de acolher, proteger e realizar ações para redução dos danos sofridos pelas crianças e adolescentes, bem como responsabilizar e, sempre que possível, tratar dos agentes violadores.

A cartilha “Todos contra a Pedofilia”, produzida pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG), traz orientações sobre as maneiras como os atos de pedofilia podem ser denunciados.

Pode-se procurar a Polícia Militar, as Delegais de Polícia Civil Estadual ou Federal, a Promotoria de Justiça da Vara da Infância e da Juventude ou Criminal e o Conselho Tutelar.

Pode-se fazer contato pelo Disque 100 – Secretaria dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República (ligação anônima) – e pela Internet por meios dos sites:
www.safernet.org.br / Safernet – combate à pornografia infantil na internet no Brasil
www.denunciar.org.br / Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos

A denúncia pode ser anônima!

O Ministério Público Federal informa também que pode-se enviar mensagem para a Secretaria Especial dos Direitos Humanos no e-mail: disquedenuncia@sedh.gov.br.

O enfrentamento das violências tratadas neste texto exige que as famílias, a sociedade e as organizações governamentais e não-governamentais que atendem crianças, adolescentes e suas famílias atuem conjuntamente, formando uma rede ativa e integrada de proteção.

Bibliografia

Bolwby, John. (2002). Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes.

BRASIL. Lei Federal nº. 8.069 de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. 1990.

Fragoso, M. Tigre, Tigre. Rio de Janeiro: Rocco.

Küng, A. G., Ramalho, F.B., Nascimento, J.K.B. & Valentim, M.C.O. (2009). O direito à sexualidade em tempos de pedofilia e criminalização: uma contribuição para a desconstrução da generalização e do sensacionalismo atuais. In Associação Nacional dos Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Org), A defesa de crianças e adolescentes vítimas de violências sexuais. São Paulo.

Libório, R.M.C. & Castro, B.M. Abuso, exploração sexual e pedofilia: as intrincadas relações entre os conceitos e o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. In: Ungaretti, M.A. (Org). Criança e Adolescente: direitos, sexualidades e reprodução (p.19 a 41). São Paulo: ABMP, 2010.

Martins, C. B. G. M & Jorge, M. H. P. M. (2011). Violência contra crianças e adolescentes. Londrina: Eduel.

Ministério Público Federal (MPF). Turminha do MPF. Recuperado em 05 de novembro de 2015 do site http://www.turminha.mpf.mp.br/direitos-das-criancas/18-de-maio/o-que-e-pedofilia.

Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Todos contra a Pedofilia. Algumas informações para os pais ou responsáveis. CPI Contra a Pedofilia. 3ª edição.

Winnicott, Donald W. (1993). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Editora Martins Fontes.