Organizações devem preparar-se para identificar violências contra crianças e adolescentes

Fabio Ribas
05/11/2018

Pesquisa divulgada em abril de 2018 pela organização Visão Mundial e pelo Instituto Ipsos aponta o Brasil como líder no ranking de violências contra crianças e adolescentes na América Latina. Segundo o estudo, três em cada dez brasileiros entrevistados afirmaram conhecer pessoalmente uma criança que já sofreu violência. Nessa mesma direção, o Atlas da Violência 2018, publicado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, informa que a taxa de assassinatos de jovens com 15 anos ou mais apresentou aumento em 20 Estados da Federação.

Embora o enfrentamento desse problema não dependa apenas da existência de marcos legais, é importante lembrar que nossa legislação contém elementos que podem contribuir para a mudança dessa situação. A Lei nº 13.046, de 1º de dezembro de 2014, introduziu mudanças importantes no ECA no que se refere às obrigações das organizações públicas e privadas quanto ao reconhecimento e comunicação de violências que possam estar sendo cometidas contra crianças e adolescentes.

A primeira mudança foi a inclusão no ECA do artigo 70-B, segundo o qual as entidades que oferecem atividades de cultura, lazer, esporte e diversões para crianças e adolescentes, ou que oferecem atividades de cuidado, assistência ou guarda de crianças e adolescentes devem contar, em seus quadros, com pessoas capacitadas para reconhecer e comunicar ao Conselho Tutelar suspeitas ou casos de maus tratos praticados contra o público atendido, sendo passível de punição o retardamento ou omissão dessa comunicação.

Nessa mesma direção, foi incluído no ECA o artigo 94-A, segundo o qual as entidades que abrigam ou recepcionam crianças e adolescentes, ainda que em caráter temporário, devem ter, em seus quadros, profissionais capacitados a reconhecer e reportar ao Conselho Tutelar suspeitas ou ocorrências de maus tratos.

Finalmente, o artigo 136 do ECA, que trata das atribuições do Conselho Tutelar, recebeu um inciso adicional (inciso XII) que estabelece como tarefa desse conselho promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus tratos em crianças e adolescentes.

Cabe acrescentar que, antes mesmo de receber as alterações acima citadas, introduzidas pela Lei 13.046/2014, o ECA já determinava que as instituições ou serviços de saúde e de educação devem comunicar ao Conselho Tutelar sinais ou ocorrências de violências contra crianças e adolescentes.

No caso dos serviços de saúde essa obrigação está estabelecida no artigo 13 do ECA, segundo o qual os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus tratos contra criança ou adolescente devem ser obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade. Cabe destacar que o Sistema de Saúde conta com normas próprias que estabelecem essa obrigação. A Portaria nº 1.968 de 25/10/2001, do Ministério da Saúde, determina que os responsáveis técnicos de todas as entidades de saúde, integrantes ou participantes do SUS, devem comunicar aos Conselhos Tutelares ou ao Juizado da Infância e da Juventude da localidade todos os casos de suspeita ou confirmação de maus tratos contra crianças e adolescentes por elas atendidos. Atento à importância do tema, o Ministério da Saúde lançou, em 2014, documentos que orientam os profissionais da área da saúde para o reconhecimento de sinais e sintomas de violências, e para a adoção de práticas de atenção integral a crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências (links para acesso a esses documentos estão disponíveis no final do presente texto).

Na área da educação essa obrigação está estabelecida no artigo 56, inciso I do ECA, segundo o qual os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental devem comunicar ao Conselho Tutelar casos de maus tratos envolvendo alunos, bem como casos de alunos que apresentem faltas injustificadas de forma reiterada, que evadam da escola ou que apresentem níveis elevados de repetência – fatos estes que podem decorrer de negligência ou maus tratos cometidos por familiares, ou por outros agentes, contra crianças e adolescentes.

Portanto, toda e qualquer organização ou serviço de atendimento de crianças e adolescentes deve contar com profissionais preparados para reconhecer e comunicar a ocorrência de violências contra esse público.

Para tanto, as Secretarias Municipais das áreas da Assistência Social, Saúde e Educação devem investir na capacitação dos servidores públicos para que eles estejam habilitados a reconhecer sinais e ocorrências de violências. Devem, também, estimular e orientar as organizações da sociedade civil para que elas caminhem nessa direção. Os conselheiros tutelares devem ser selecionados e capacitados pelas Prefeituras Municipais tendo em vista este mesmo critério.

Outra condição essencial para que as normas legais funcionem é o fortalecimento do diálogo e da cooperação entre as organizações de atendimento e os Conselhos Tutelares. Coloca-se aqui o desafio da construção de relações intersetoriais e de fluxos operacionais efetivos entre as organizações que integram as redes locais de atendimento. Ao contrário da ação integrada prevista no ECA, o que se nota na maioria dos municípios ainda é a fragmentação e a fragilidade nas relações entre os serviços e agentes que integram os Sistemas Municipais de Garantia de Direitos. Em um amplo número de municípios os Conselhos Tutelares ainda atuam de forma relativamente isolada, sem vínculos efetivos de integração com os demais agentes das redes de atendimento e proteção.

Mais além da identificação e comunicação de ocorrências de casos de violências, as organizações e serviços de atendimento de crianças e adolescentes devem atuar para reduzir e prevenir a ocorrência desses problemas. Isto envolve a adoção de estratégias de atendimento que não se limitem à oferta de atividades no espaço intramuros das instituições, mas que também busquem promover o fortalecimento dos vínculos familiares e das condições de convivência comunitária, considerando as condições sociais, econômicas, ambientais e de segurança presentes nos territórios em que as crianças e os adolescentes residem.

Por exemplo, muitas organizações e programas sociais estão incluindo entre seus objetivos a redução da exposição de crianças e adolescentes a situações de violência. Para tanto, buscam estimular e fortalecer a participação de familiares e membros adultos das comunidades locais nos processos de educação e de proteção das crianças e adolescentes, bem como oferecer aos familiares informações e oportunidades para discussão de temas de seu interesse e de questões relevantes para as comunidades locais. Também tem crescido o número de iniciativas de capacitação das próprias crianças e adolescentes para que reconheçam riscos à sua segurança pessoal, desenvolvam capacidades de autodefesa e autocuidado, compreendam seus direitos e assumam atitudes de participação ativa em questões sociais das comunidades em que residem. Este tipo de ação institucional pode ser fortalecido se for desenvolvido por meio de parcerias entre organizações de atendimento, públicas e privadas, que atuam em um mesmo território ou que atendem diferentes membros das mesmas famílias.

Numa perspectiva mais abrangente, a redução das violências contra crianças e adolescentes depende do envolvimento consciente da população em ações que fortaleçam os vínculos de convivência democrática nas comunidades locais. A participação da população está no cerne do conceito de segurança cidadã, proposto por Paulo de Mesquita Neto. Segundo este conceito, a segurança pública não depende apenas da intervenção do Estado no combate à violência, mas da forma de convivência vigente em uma sociedade que se pretende democrática.

Acesse aqui o relatório da pesquisa realizada pela Visão Mundial e Instituto Ipsos: Violência Contra Crianças & Adolescentes – Percepções Públicas no Brasil

Acesse aqui o Atlas da Violência 2018 – IPEA/FBSP

Acesse aqui a publicação do Ministério da Saúde: Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência

Acesse aqui a publicação do Ministério da Saúde: Metodologias para o Cuidado de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência

Acesse aqui artigo sobre o conceito de segurança cidadã