Organizações da Sociedade Civil no Brasil: um universo a ser mais conhecido e valorizado

Fabio B. Ribas Jr.
18/03/2019

Os estudos “Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil – FASFIL” (publicado pelo IBGE em 2010) e “Perfil das Organizações da Sociedade Civil no Brasil” (publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA em 2018), buscaram mapear o número e as áreas de atuação das organizações da sociedade civil (OSC) existentes em nosso país.

Segundo ambos os estudos, para ser considerada como organização da sociedade civil uma instituição deve enquadrar-se simultaneamente nos seguintes critérios:
– Ser privada, sem vínculo jurídico ou legal com o Estado;
– Não ter finalidade lucrativa;
– Ser legalmente constituída, com inscrição no CNPJ;
– Ser autoadministrada;
– Ser constituída voluntariamente por indivíduos e realizar atividades livremente escolhidas por seus responsáveis.

Muitas das organizações mapeadas nesses dois estudos se enquadram na definição proposta por Rubem César Fernandes em seu livro Privado porém público: o terceiro setor na América Latina” (Editora Relume-Dumará, 1994): segundo este autor, tratam-se de organizações criadas por iniciativas privadas, mas que possuem finalidades públicas, distinguindo-se assim tanto dos órgãos do setor estatal (que integram o chamado primeiro setor, e que têm como finalidade a gestão de políticas públicas), quanto das empresas privadas (que integram o segundo setor, e que têm como finalidade principal a geração de lucro para seus proprietários e acionistas).

Muitas organizações do terceiro setor (organizações da sociedade civil, sem fins lucrativos) podem contribuir para o fortalecimento das políticas públicas em diversas áreas. Lester Salamon (no artigo “Estratégias para o fortalecimento do terceiro setor” publicado no livro “3º Setor: desenvolvimento social sustentado” – Editora Paz e Terra, 1997), identifica nas organizações do terceiro setor as seguintes capacidades:
– Por sua escala geralmente modesta e sua flexibilidade, elas respondem com certa agilidade às necessidades e prestam serviços em escala humana;
– Por sua relativa independência, estão aptas a defender causas controversas ou enfrentar questões mal compreendidas;
– Têm confiabilidade e vínculos com grupos e comunidades locais;
– São equipadas para mobilizar as energias populares; identificar novos problemas e trazê-los a público; mobilizar recursos humanos e financeiros paralisados; promover mudanças; formar novos líderes; contribuir para legitimar e garantir o apoio popular às políticas exigidas e, dessa forma, implementá-las.

O novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014), que passou a vigorar para todos os municípios brasileiros a partir de 2017, nos leva a concentrar atenção nas organizações da sociedade civil sem fins lucrativos que possuem perfil institucional e capacidade de atuação que as qualificam para realizar parcerias com órgãos governamentais, tendo em vista a oferta de serviços de caráter público em áreas como assistência social, saúde, educação, cultura, defesa de direitos, entre outras.

A contribuição dessas OSC pode ser essencial para que as políticas públicas das áreas acima citadas sejam fortalecidas. Além de atender populações e territórios nem sempre alcançados pelos serviços estatais, muitas dessas organizações exercem o papel de estimular o poder público para que políticas sociais prioritárias sejam aprimoradas. Por isto, é essencial que, em cada município, essas OSC sejam reconhecidas e valorizadas.

Quantas OSC existem no Brasil e em que áreas elas atuam?

Segundo o estudo FASFIL, realizado pelo IBGE, em 2010 o Brasil possuía 290.692 Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos. Já o estudo do IPEA, publicado em 2018 e baseado em dados relativos ao ano de 2016, apontou que, nesse ano, o país contava com 820.186 organizações da sociedade civil.

A diferença entre os números apontados pelos dois estudos é muito grande. Não é possível que entre 2010 e 2016 o número de OSC tenha aumentado tanto no Brasil. Assim, a diferença certamente se deve à forma de conceituação e de mapeamento das OSC adotada em cada um desses estudos.

O quadro que se segue apresenta uma comparação entre os números de OSC apontados nos dois estudos, com a indicação das áreas de atuação das organizações mapeadas em cada um deles. Nota-se que as áreas de atuação em que há maior semelhança entre os números apurados nos dois estudos são “saúde” e “assistência social”. Nas demais áreas a diferença é muito grande, sendo que as maiores divergências aparecem nas áreas de atuação “defesa de direitos e interesses”, “outras atividades e tipos de OSC” e “religião”.

Área de atuação das OSC

Número de OSC apontado no estudo do IBGE (2010)

Número de OSC apontado no estudo do IPEA (2016)

Saúde

6.029

6.841

Cultura e recreação

36.921

79.917

Educação e pesquisa

17.664

39.669

Assistência social

30.414

27.383

Religião

82.853

208.325

Associações patronais e profissionais

44.939

22.261

Defesa de direitos e interesses

42.463

339.104

Outras atividades associativas e outros tipos de OSC

29.409

96.686

Total

290.692

820.186


Essas diferenças podem ser explicadas pelo fato de que o estudo do IBGE identificou, inicialmente, 556,8 mil entidades cadastradas em suas bases de dados, mas excluiu desse universo uma série de entidades tais como caixas escolares, sindicatos, etc., com o que o número das chamadas FASFIL – fundações privadas e associações sem fins lucrativos – focalizadas nesse estudo diminuiu para cerca de 290,7 mil. Por outro lado, entre as 820,2 mil OSC indicadas no estudo do IPEA estão incluídos vários casos de organizações que possuem unidades em diferentes endereços, sendo que cada uma dessas unidades foi computada como uma OSC.

A análise detalhada dos dados do estudo do IPEA traz outras explicações para as diferenças citadas. Essa análise pode ser feita por meio de consulta à planilha disponível no website “Mapa das OSC”, criado pelo IPEA, que aponta as atividades e subatividades específicas realizadas pelas mais de 820 mil OSC nela listadas. Nessa planilha verifica-se a existência de 371 tipos diferentes de atividades e subatividades realizadas pelo conjunto das organizações mapeadas.

A análise desses dados permite verificar que muitas das OSC incluídas pelo IPEA na área “defesa de direitos e interesses” realizam atividades que, embora não tenham finalidade lucrativa, estão articuladas a processos de trabalho que integram diferentes cadeias produtivas de variados setores da indústria, comércio e serviços. Nesses casos, trata-se de atividades que podem gerar receitas para as respectivas OSC, mas que não são apropriadas privadamente por seus dirigentes e sim empregadas para a manutenção das próprias entidades e/ou para o atendimento de necessidades e interesses mútuos de seus associados.

Muitas das OSC classificadas no estudo do IPEA na categoria “outras atividades associativas” também estão voltadas prioritariamente ao benefício mútuo de seus associados, e são mantidas, entre outras formas, por contribuições financeiras dos próprios associados.

Ainda entre as OSC citadas no Mapa do IPEA, certamente existem várias que combinam atividades voltadas ao benefício mútuo de associados com atividades de atendimento gratuito a populações em situação de vulnerabilidade social. Este pode ser o caso de uma boa parcela das OSC classificadas nas áreas de atuação “defesa de direitos e interesses” e “religião”, e também de parcela das que se inserem nas áreas ligadas a políticas públicas setoriais, tais como “assistência social”, “saúde”, “educação” e “cultura”.

Ao mesmo tempo, tanto no vasto número de OSC citadas no website do IPEA, quanto nas OSC mapeadas no estudo FASFIL do IBGE, uma parcela importante das organizações tem como foco de atuação a oferta de programas ou serviços voltados ao atendimento de crianças, adolescentes, jovens, famílias, pessoas idosas, pessoas com deficiência, comunidades tradicionais, grupos discriminados, etc., públicos esses que não integram as próprias OSC enquanto associados, mas que são por elas atendidos gratuitamente. Essas OSC atuam em áreas como defesa de direitos, assistência social, educação, saúde, cultura, etc., buscando melhorar as condições de vida de segmentos da população residentes nas localidades alcançadas por suas ações, ou influenciar órgãos estatais para que as políticas dessas áreas sejam ampliadas ou aprimoradas. A ampla maioria desse segmento de OSC voltada ao atendimento de públicos em situação de vulnerabilidade não gera receita financeira por meio de suas atividades, mas depende de fontes externas de recursos (em especial doações privadas e transferências de verbas públicas) para a realização de suas atividades.

Em suma, é difícil estimar com precisão quantas das OSC mencionadas na base dados do website do IPEA atuam exclusivamente em benefício mútuo de seus associados, quantas atuam exclusivamente em benefício de terceiros e, ainda, quantas combinam esses dois objetivos. Ao mesmo tempo, há razões para supor que o estudo FASFIL tenha focalizado especialmente organizações que atuam prioritariamente para o atendimento de terceiros (populações em situação de vulnerabilidade social) e que não estão voltadas ao benefício mútuo de seus associados, mas os dados do estudo não possibilitam um reconhecimento mais claro desse aspecto.


O Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil e as políticas voltadas a crianças e adolescentes

O novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (Lei 13.019/2014) representa uma oportunidade para que o poder público some forças com as OSC que podem contribuir para o fortalecimento e a disseminação de políticas setoriais.

A publicação “Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente: Guia para gestão de parcerias com base no MROSC”, lançada pela Fundação Abrinq, orienta os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente a planejar, celebrar e monitorar parcerias com organizações da sociedade civil existentes em cada município, tendo por base as normas do MROSC (Lei 13.019/2014) e a legislação que define o papel deliberativo e controlador dos próprios conselhos.

Segundo esse guia, o MROSC estabelece normas que permitirão aos Conselhos e Fundos atender de forma mais efetiva as necessidades locais de proteção de crianças e adolescentes, especialmente dos segmentos desse público que se encontram em situação de risco social ou que estão com seus direitos violados (submetidos a situações de ruptura dos laços de convivência familiar, violência doméstica, trabalho infantil, abuso ou exploração sexual, aliciamento por grupos criminosos para envolvimento em atividades ilícitas, evasão escolar, etc.).

Entre outros aspectos, o guia ressalta que, para deliberar de forma consistente sobre as políticas necessárias à garantia dos direitos de crianças e adolescentes, os Conselhos Municipais devem conhecer, analisar e monitorar o perfil, as ações e os resultados que vêm sendo alcançados pelas OSC locais, o que lhes permitirá não apenas reconhecer de forma mais clara a situação dos recursos operacionais disponíveis em seu município e das forças e fragilidades das OSC que integram a rede de atendimento local, mas também definir com mais consistência prioridades e caminhos para o fortalecimento dessa rede e para o emprego dos recursos dos Fundos Municipais.

Assim, mais além de manter, conforme determinado pelo Artigo 90, § 1o do ECA, um registro formal das inscrições das OSC que oferecem programas de atendimento voltados a crianças e adolescentes, os Conselhos Municipais devem incorporar em seu modo de funcionamento a atualização permanente do mapeamento e análise de dados sobre o perfil, as áreas de atuação e os resultados alcançados pelas OSC existentes em cada localidade. Isto contribuirá para a formação de uma visão mais clara, e permanentemente atualizada, do universo das organizações da sociedade civil.

Acesse aqui o estudo do IBGE: “Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil – FASFIL” (2010)

Acesse aqui a publicação do IPEA: “Perfil das Organizações da Sociedade Civil no Brasil” (2018)

Acesse aqui o “Mapa das OSC” desenvolvido pelo IPEA

Acesse aqui: “Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente: Guia para gestão de parcerias com base no MROSC”