Fabio Ribas
Em 04/10/2023 entrou em vigor a Lei 14.692/2023 que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), autorizando doadores privados a escolherem qual ou quais projetos operados por organizações da sociedade civil (OSC) deverão receber suas doações aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente. (1)
A nova lei torna legal a chamada doação dirigida, ao estabelecer que “o contribuinte poderá indicar o projeto que receberá a destinação de recursos, entre os projetos aprovados por conselho dos direitos da criança e do adolescente”. Ou seja, segundo essa lei o Conselho deve divulgar a relação de projetos operados por OSCs em seu município que possam receber doações, para que doadores privados escolham o projeto e a entidade de sua preferência e informem o Conselho que sua doação ao Fundo deve ser direcionada conforme sua escolha.
Ao mesmo tempo, a nova lei estabelece que os Conselhos podem “chancelar projetos ou banco de projetos, por meio de regulamentação própria”. A chancela é definida na lei como concessão de autorização para que OSCs possam fazer “captação de recursos por meio dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente com a finalidade de viabilizar a execução dos projetos aprovados pelos conselhos”.
Na verdade, a Lei 14.692/2023 nada mais fez do que legalizar normas que foram emitidas pelo CONANDA em sua Resolução 137/2010 (artigos 12 e 13) e que desde 2010 já vinham sendo adotadas por um amplo número de Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.
O artigo 12 dessa Resolução do CONANDA afirmava que “a utilização dos recursos dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente deve competir única e exclusivamente aos Conselhos dos Direitos”. No entanto, o § 1º desse mesmo artigo estabelecia que “dentre as prioridades do plano de ação aprovado pelo Conselho de Direitos, deve ser facultado ao doador/destinador indicar aquela ou aquelas de sua preferência para a aplicação dos recursos doados/destinados.” Em muitos casos, o referido “plano de ação aprovado pelo Conselho de Direitos” se resumia à indicação de temas genéricos e/ou à publicação da relação de entidades da sociedade civil que poderiam ser escolhidas por doadores privados para receber os recursos doados por estes aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Já o artigo 13 dessa mesma Resolução do CONANDA estabelecia o mecanismo da “chancela” – definido como autorização, por parte dos Conselhos de Direitos, para que entidades da sociedade civil cujos projetos tivessem sido previamente “aprovados” pelo respectivo Conselho pudessem captar recursos diretamente junto a doadores privados, recursos estes que, uma vez encaminhados pelos doadores aos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, deveriam ser posteriormente repassados pelo respectivo Conselho à entidade responsável pela captação, para financiamento das ações da entidade captadora. Esse mesmo artigo 13 estabelecia que os Conselhos deveriam fixar percentual de retenção dos recursos captados em cada chancela de, no mínimo, 20% para o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente. Apenas sobre esse percentual de 20% o Conselho poderia exercer, sem interferência de agentes privados, sua atribuição deliberativa.
Na prática, essas normas, agora transformadas em lei, estimulam que os Conselhos de Direitos atuem como simples repassadores de recursos para projetos escolhidos por doadores privados, ou para entidades da sociedade civil que possuam condições ou relacionamentos que as ajudem a captar doações ao Fundo junto a empresas privadas.
É importante recordar que, após longo processo judicial, em 2022 os referidos artigos 12 e 13 da Resolução CONANDA 137/2010 (agora validados pela Lei 14.692/2023) foram julgados como ilegais em sentença definitiva do Tribunal Regional Federal (TRF1), na Ação 0033787-88.2010.4.01.3400. Cabe aqui transcrever a síntese da decisão do TRF1:
“Nos termos do §2º do art. 260 da Lei n ° 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), alterado pela Lei n° 13.257 / 2016 delegou-se competência aos Conselhos Municipais, Estaduais e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, apenas, para fins de limitação dos critérios de utilização dos recursos vertidos aos respectivos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente, nada dispondo sobre a eventual extensão dessa delegação, para fins de captação dos recursos, nem tampouco, sobre a possibilidade de facultar-se aos colaboradores ou doadores uma indicação da destinação de sua preferência para os recursos doados. Na hipótese dos autos, a delegação de competência a particulares, quanto à gestão da indicação da destinação dos recursos captados pelos fundos, a que se reportam as arts. 12 e 13 da Resolução CONANDA n° 137/2010, afigura-se flagrantemente abusiva, por violação ao princípio da legalidade.”
Na mesma sentença, o TRF 1 determinou “que o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente se abstenha de disciplinar a distribuição de recursos dos Fundos dos Direitos da Criança e do adolescente por meio de captação direta de recursos por particulares ou por meio de doações vinculadas até que sobrevenha permissão veiculada em lei formal.”
Ou seja, o TRF1 entendeu que, segundo o ECA, a deliberação sobre a utilização dos recursos dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente era competência exclusiva dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente. E, com base no princípio básico que rege a atuação do Poder Judiciário, o TRF1 afirmou que apenas uma mudança na lei (no caso, no ECA) poderia tornar possível o emprego de normas como as estabelecidas nos artigos 12 e 13 da Resolução CONANDA 137/2010. Em face da decisão do TRF1, um grupo de parlamentares articulou a alteração no ECA agora efetivada pela Lei 14.692/2023. Essa lei nada mais fez que incluir os artigos 12 e 13 da Resolução 137/2010 no ECA, com o que sua adoção pelos Conselhos de Direitos não poderá mais ser considerada ilegal.
É fundamental observar que a decisão do TRF1 foi absolutamente coerente com as normas do ECA que agora foram alteradas pela Lei 14.692/2023. Com efeito, uma das principais transformações que o ECA (criado em 1990, sob inspiração da Constituição Federal de 1988) trouxe para a implantação de uma gestão qualificada e transparente das políticas e recursos públicos direcionados a crianças e adolescentes foi a criação dos Conselhos de Direitos como órgãos democráticos, compostos paritariamente por representantes governamentais e representantes da sociedade civil, aos quais foi atribuída a função central de deliberação sobre prioridades a serem concretizadas para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes nos diversos entes federativos nacionais, e de gestão qualificada dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente com base nessas mesmas prioridades estabelecidas pelos Conselhos.
Ao criar os Conselhos de Direitos, o ECA seguiu princípios que orientaram a elaboração da Constituição Federal de 1988: aprofundamento e consolidação de mecanismos democráticos e transparentes de gestão de políticas e recursos públicos; definição da garantia dos direitos de e crianças e adolescentes como prioridade absoluta. A Lei 14.692/2023 tende a fragilizar a atuação dos Conselhos pela razão exposta na decisão do TRF1 emitida em 2022: a função deliberativa dos Conselhos passa a ser transferida, em boa medida, para particulares e instituições privadas.
O fato de a Lei 14.692/2023 afirmar que “o contribuinte poderá indicar o projeto que receberá a destinação de recursos, entre os projetos aprovados por conselho dos direitos da criança e do adolescente“ não elimina os riscos anteriormente citados: toda e qualquer OSC que atenda crianças e adolescentes, que esteja inscrita no Conselho de seu município e que não esteja em situação ilegal pode ser chancelada pelo Conselho para receber ou captar doações de entes privados, doações essas que, uma vez direcionadas ao Fundo, deverão ser repassadas pelo Conselho para o projeto escolhido pelo doador. Entre os projetos chancelados pelo Conselho certamente deve haver diferentes níveis de prioridades: alguns podem atender públicos mais vulneráveis que outros; alguns podem operar em regiões locais mais críticas que outros. Em muitos municípios existem problemas que não são enfrentados e prioridades que não estão sendo atendidas pelas OSCs locais. Nesses casos o próprio Conselho deve mobilizar recursos para criar ou disseminar ações inexistentes no município e que são necessárias para a garantia de direitos. A definição de prioridades é uma atribuição essencial dos Conselhos de Direitos que a nova lei não enfatiza, uma vez que a escolha de projetos já existentes a serem apoiados financeiramente passa a ser feita pelos doadores privados.
Justificativas que podem ser alegadas para essa alteração legal no ECA são as mesmas que levaram o CONANDA a propor essas mesmas normas em sua Resolução 137/2010: facilitar as doações por parte de empresas privadas para ampliar o ingresso de recursos nos Fundos.
Nesse sentido, cabe reproduzir aqui avaliação que consta em guia publicado em 2017 pela Fundação Abrinq (2) sobre o caminho a ser percorrido para que a gestão dos Fundos da Criança e do Adolescente seja desenvolvida de forma consistente pelos Conselhos de Direitos:
“… indicações de doadores podem dar margem a que interesses particulares de pessoas ou organizações se superponham a critérios de interesse público na gestão do Fundo. Por isso, as decisões dos Conselhos sobre a aplicação dos recursos do Fundo devem ser fundadas em diagnósticos que justifiquem de forma detalhada as áreas de atendimento que devem ser priorizadas, a forma pela qual as verbas devem ser empenhadas e os destinatários diretos dos recursos. Esta seria a forma correta de exercício da competência programadora que o Conselho, como ente público, deve exercer de forma exclusiva e intransferível.
A impossibilidade de escolha direta de organizações ou projetos pelos doadores não implica restrição à possibilidade de participação democrática da população no processo de decisão sobre as questões, organizações ou ações que devam ser priorizadas para a alocação dos recursos do Fundo. Os doadores podem participar do processo de discussão do Plano de Ação Municipal, que deve ser elaborado sob a coordenação do Conselho com base em consultas à população. Esta seria a forma de participação amparada na Constituição Federal e no ECA, que não pressupõe delegação de poderes do Conselho a terceiros e não afronta os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência que devem orientar a gestão dos recursos públicos.”
(…)
“Diagnósticos periodicamente atualizados e aperfeiçoados permitirão que os Conselhos exerçam seu papel deliberativo com mais consistência, passando a comunicar à sociedade, com mais clareza, problemas a serem enfrentados, públicos a serem alcançados e objetivos a serem atingidos para que os direitos de crianças e adolescentes sejam efetivamente alcançados. Bons diagnósticos ajudarão os Conselhos a gerar indicadores que permitam a hierarquização de prioridades para aplicação de recursos que, no mais das vezes, são insuficientes para dar conta do universo de ações e organizações que demandam financiamento. Por seu turno, cidadãos e empresas interessados em participar do processo de escolha das ações a serem financiadas com suas doações, mas também no emprego de critérios consistentes de aplicação dos recursos e no fortalecimento do Conselho como instância de gestão pública competente e transparente, certamente valorizarão a existência do diagnóstico municipal e do empenho do Conselho em realizá-lo.”
Em suma, os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente devem realizar diagnósticos municipais que fundamentem a definição de prioridades para aplicação dos recursos dos Fundos. Para tanto, cada Conselho pode criar uma Comissão de Diagnóstico e Elaboração do Plano de Ação e uma Comissão de Mobilização de Recursos para o Fundo. Este modo consistente de funcionamento foi reconhecido pelo próprio CONANDA na mesma Resolução 137/2010, cujo artigo 9 (incisos I, II, III e IV) indica que cabe aos Conselhos:
- elaborar e deliberar sobre a política de promoção, proteção, defesa e atendimento dos direitos da criança e do adolescente no seu âmbito de ação;
- promover a realização periódica de diagnósticos relativos à situação da infância e da adolescência bem como do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente no âmbito de sua competência;
- elaborar planos de ação anuais ou plurianuais, contendo os programas a serem implementados no âmbito da política de promoção, proteção, defesa e atendimento dos direitos da criança e do adolescente, e as respectivas metas, considerando os resultados dos diagnósticos realizados e observando os prazos legais do ciclo orçamentário;
- elaborar anualmente o plano de aplicação dos recursos do Fundo, considerando as metas estabelecidas para o período, em conformidade com o plano de ação.
Os Conselhos deverão decidir se, ou em que medida, adotarão as normas da Lei 14.692/2023 para a gestão operacional de seu Fundo, ou se exercerão suas atribuições com base no artigo 88, inciso IV do ECA, que delega aos Conselhos a atribuição de deliberar sobre as prioridades que devem ser concretizadas para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Ao mesmo tempo, os poderes constituídos e a população, inspirados na Constituição Cidadã de 1988, deverão valorizar e promover o fortalecimento dos Conselhos de Direitos como instâncias democráticas e transparentes de gestão de políticas e recursos públicos.
(1) Clique aqui para acessar a versão integral da Lei 14.692/2023.
(2) Clique aqui para acessar: Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente. Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente: Guia para Ação Passo a Passo. São Paulo, 2017.