Fabio Ribas
17/08/2015
A estruturação legal do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) representou a ruptura formal com a antiga tradição assistencialista brasileira e o início da busca de práticas que possam contribuir de forma mais efetiva para a redução da pobreza e da exclusão social no país.
De fato, antes do advento do SUAS inexistiam normas para uma articulação mais efetiva entre governo e sociedade civil no atendimento das populações vulneráveis; as ações eram pulverizadas e não havia parâmetros para a estruturação de fluxos e processos organizados de referência e contrarreferência entre os serviços e organizações de atendimento; a burocracia imperava nas relações entre o Estado e as organizações da sociedade civil, dificultando a efetivação de ações conjuntas na área assistencial; não havia bases de dados qualificadas para o planejamento das ações, o que dificultava a realização de diagnósticos e planos de ação consistentes para a proteção e promoção dos direitos das populações mais vulneráveis; muitos quadros de pessoal tinham baixa qualificação gerencial e técnica para operar serviços e programas assistenciais e não havia processos permanentes de capacitação de pessoal; tampouco havia a busca de uma integração entre políticas setoriais que tornasse a assistência social parceira efetiva de processos de desenvolvimento socioeconômico que fortalecessem a economia e ajudassem o país a reduzir a pobreza.
O objetivo deste artigo é trazer alguns elementos que ajudem a responder as seguintes questões: em que medida os avanços acima indicados estão sendo alcançados no Brasil com a implantação do SUAS? Quais os desafios atuais para que as normas e princípios do SUAS se concretizem no conjunto dos municípios e, em especial, naqueles de pequeno e médio porte que possuem menos recursos?
A partir da Constituição de 1988 e com o advento, em 1993, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o Sistema Único de Assistência Social começou a ser normatizado.
A assistência social passou a integrar a Política de Seguridade Social, juntamente com as áreas da Saúde e da Previdência Social. O SUAS nasceu sob a inspiração da mesma lógica de pensamento que engendrou o SUS. Assim é que a LOAS instituiu os Conselhos, Planos, Fundos e Conferências de Assistência Social, sendo consolidada pela Lei nº 12.435/2011 que normatizou a proteção social básica e a proteção social especial – conceitos orientadores dos serviços de atendimento aos públicos da assistência social –, assim como a vigilância socioassistencial – serviço responsável pela realização de diagnósticos territoriais sobre a situação e as vulnerabilidades das famílias em cada ente federativo, que fundamentem a elaboração de planos de ação socioassistencial em todas as localidadades e contribuam para o monitoramento dos resultados desses planos. Segundo as normas do SUAS, a proteção social deve envolver serviços institucionalizados e qualificados, que ofereçam à população vulnerável segurança de sobrevivência (renda e autonomia), segurança de acolhida (alimentação, vestuário, abrigo) e segurança de convívio (vivência familiar e comunitária).
Antes da revisão da LOAS ocorrida em 2011, a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais já havia normatizado, em 2009, os diferentes serviços que os municípios devem criar para o atendimento dos públicos em situação de vulnerabilidade, em diferentes níveis de complexidade (básico, médio e alto).
Nos últimos anos o processo de implantação do SUAS vem avançando a partir da implantação dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) em vários municípios. Dados disponíveis no site do MDS indicam que 8.153 CRAS e 2.351 CREAS haviam se cadastrado para enviar questionários ao Censo SUAS 2014, coordenado por aquele Ministério. Segundo a norma vigente, esses Centros de Referência são unidades em torno das quais devem ser organizados serviços e programas socioassistenciais para o atendimento de públicos e problemas diversos.
Se, do ponto de vista normativo, os caminhos para a estruturação do SUAS estão descritos com relativa clareza, cabe indagar em que medida a lógica desse sistema está sendo efetivamente concretizada no conjunto dos municípios brasileiros. À luz das prescrições legais do SUAS, e tendo em vista as dificuldades que marcam a gestão pública na maioria dos municípios, e que estão sendo agravadas pela crise econômica e política que o país atravessa, que desafios os municípios estão enfrentando hoje para operar com efetividade as políticas públicas de assistência social?
Buscando respostas a essa pergunta, em julho de 2015 a Prattein realizou consulta junto a dez profissionais com experiência de vários anos na gestão e/ou na operação de políticas de assistência social, sob a vigência do SUAS, em municípios de pequeno e médio porte, situados em seis Estados de três das cinco grandes regiões brasileiras. Algumas(uns) dessas(es) profissionais chegaram a atuar por certo tempo como Secretárias(os) Municipais de Assistência Social; outras(os) coordenaram Centros de Referência de Assistência Social, acompanharam a implantação ou participaram da operação de serviços normatizados pelo SUAS, tais como o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. A intenção da consulta foi levantar percepções que possam estimular uma avaliação mais ampla da situação atual do SUAS nos municípios brasileiros. Como não se tratou de estudo estatisticamente orientado (os depoentes foram escolhidos por sua experiência e compromisso ético com a realização de ações qualificadas e efetivas na área da assistência social e não por critério amostral aleatório; os municípios em que eles atuam estão longe de constituir uma amostra representativa das pequenas e médias cidades brasileiras), o resultado das entrevistas não pode ser tomado como expressão da situação do SUAS no conjunto dos municípios brasileiros de pequeno e médio porte. Pode, contudo, gerar hipóteses para uma avaliação mais ampla.
A pergunta formulada aos profissionais da assistência social foi a seguinte: quais os principais desafios práticos que você reconhece, hoje, para a operação do SUAS em seu município e em municípios de sua região nos quais já você tenha atuado ou sobre os quais tenha conhecimento? Ao formular a pergunta, buscou-se deixar claro que ela não se referia à validade ou à importância dos princípios orientadores do SUAS, mas sim às condições concretas de sua operação no momento presente. A síntese dos desafios apontados pelos entrevistados é a seguinte:
- Na visão dos entrevistados, é comum a existência de Prefeitos e Secretários Municipais de Assistência Social que não aceitam ou não adotam os princípios e as normativas do SUAS. Nesses casos, a condução das políticas assistenciais continua sendo feita com base na antiga cultura da benemerência (concessão de cestas básicas, pagamento de consultas, doação de óculos, distribuição de remédios, etc.) ou com base em critérios populistas ou patrimonialistas.
- Os municípios sofrem com a falta de recursos suficientes para efetivar o SUAS. Os valores repassados a eles pela União e pelos Estados são insuficientes. O orçamento dos municípios para a assistência social é muito pequeno (algo em torno de 3% do orçamento municipal). A União e os Estados têm dificuldade para reconhecer com clareza as diversidades e especificidades dos municípios e para dialogar de forma personalizada com eles sobre a gestão dos recursos.
- Devido, em parte, à permanência da cultura assistencialista tradicional e, em parte, às dificuldades orçamentárias dos municípios, ainda é comum que certos serviços socioassistenciais tipificados no SUAS sejam implantados por gestores municipais tendo em vista, acima de tudo, a obtenção de recursos federais e a redução da probabilidade de ocorrência de eventuais conflitos no relacionamento entre o município e o Ministério do Desenvolvimento Social. Para alguns gestores municipais, a obtenção de recursos financeiros frequentemente é mais importante que a atenção às normas que deveriam orientar a implantação e operação dos serviços. Alguns gestores claramente não aderem a essas normas.
- Na visão dos entrevistados, é comum a existência de vereadores nas Câmaras Municipais que também não aceitam a lógica do SUAS e os princípios da proteção e da promoção de direitos que devem fundamentar seu funcionamento. Interesses particularistas, dissociados dos interesses coletivos da cidadania, explicam em boa medida essa não aceitação.
- Boa parte da população (e, em especial, um amplo contingente dos usuários do SUAS) também não tem suficiente informação e compreensão acerca das normas legais que devem regular a política pública de assistência social. Isso dificulta o exercício do protagonismo e a reivindicação de direitos por parte dos usuários. A antiga cultura da benemerência e da relativa aceitação da dependência como algo natural ainda prevalece em boa parte da população. Nesse sentido, a conscientização, o empoderamento e a participação mais efetiva dos usuários estão entre os principais desafios para o avanço na implantação do SUAS.
- A promoção da inclusão produtiva foi citada pelos entrevistados como objetivo muito importante e presente na normativa do SUAS. Mas, para eles, alguns operadores do sistema nos municípios ainda têm grande dificuldade para ajudar as famílias vulneráveis a definir e perseguir projetos nessa direção. Muitas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família ainda têm dificuldades para aderir ao ACESSUAS Trabalho/PRONATEC, ou não estão sendo suficientemente apoiadas pelos serviços socioassistenciais para formular projetos nesse sentido. Por seu turno, alguns municípios oferecem nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) apenas cursos elementares e não articulados de forma consistente a demandas e oportunidades do mercado de trabalho (por exemplo, cursos de bordado, pintura em tela e outros artesanatos simples, em geral destinados ao público feminino, que pouco contribuem para a inclusão produtiva sustentável das famílias). É rara a articulação de parcerias intersetoriais, envolvendo Secretarias Municipais, ONGs, empresas e organizações representativas dos trabalhadores, que favoreçam a profissionalização dos usuários e abram para eles portas de saída da assistência social.
- Segundo os entrevistados, em alguns municípios as formas de contratação e as condições de trabalho dos profissionais da assistência social são precárias ou simplificadas. Os salários iniciais são baixos (em torno de R$1.000,00 a R$1.500,00 por 30 horas semanais em várias regiões do país). Em alguns municípios não há concurso público ou coexistem diferentes tipos de vínculo trabalhista. Muitos técnicos trabalham em mais de um município para melhorar sua renda. O Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS) preconizado na Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do SUAS (NOB/RH) inexiste ou é muito incipiente em algumas localidades. As condições de trabalho vigentes nesses contextos geram baixa produtividade, descumprimento de cargas horárias, vínculo frágil com o trabalho e alta rotatividade entre os profissionais.
- Em virtude da falta de recursos financeiros e da precariedade das condições de trabalho, em alguns municípios a infraestrutura física e humana para a adequada implantação dos serviços tipificados no SUAS é claramente frágil. Mesmo em municípios onde o regime de contratação é adequado e os serviços são relativamente estruturados, os técnicos não conseguem alcançar o contingente da população que deveria ser atendido segundo os critérios do SUAS.
- Em alguns municípios é comum a presença de profissionais com formação precária, que possuem conhecimento limitado das normas e princípios do SUAS. É rara a existência de processos de formação continuada em serviço. Os processos de seleção e as condições de trabalho não contribuem para atração e manutenção de profissionais mais bem preparados.
- Alguns Conselhos Municipais de Assistência Social não estão bem capacitados para exercer suas atribuições. Em especial, frequentemente os representantes da sociedade civil ainda expressam uma visão da assistência social baseada na benemerência e distanciada dos princípios que orientam o SUAS.
- Para os entrevistados, em alguns municípios as ações da assistência social ainda se organizam quase que exclusivamente no interior dos CRAS, que tendem a atuar de forma reativa e não proativa e articuladora. Nesses municípios a maioria dos serviços descritos na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais inexiste na prática; os serviços existentes são operados com dificuldade por um grupo de trabalhadores municipais muito reduzido ou por organizações não governamentais que atuam sem estreita supervisão ou articulação com a Secretaria ou Departamento Municipal de Assistência Social. O perfil reativo (não proativo) de alguns CRAS faz com que a população tenha que ir até o serviço, e não o contrário. Nesses casos, a assistência social tende a funcionar como um “plantão social” que se limita a atender de forma burocrática as demandas de quem a procura e não estimula a participação ativa das comunidades, nem promove a articulação das potencialidades existentes nos territórios para a restauração de direitos ou a criação de condições sustentáveis para a melhoria da qualidade de vida da população vulnerável.
- A vigilância socioassistencial não está estruturada em diversos municípios. Isso significa que as atividades de diagnóstico socioterritorial e de planejamento e monitoramento das ações da assistência social são praticamente inexistentes nessas localidades. O serviço de Busca Ativa também é bastante frágil ou inexistente em diversos municípios. Esses fatores contribuem para que as ações da assistência social mantenham um perfil mais reativo que proativo.
Os depoimentos acima sintetizados permitem formular a hipótese geral de que, embora o país conte hoje com um marco legal avançado na área da assistência social, e apesar dos avanços registrados nos últimos anos, há ainda um significativo caminho a percorrer para a efetiva concretização das normas do SUAS em diversos municípios. Estudos mais abrangentes poderão aferir em que medida os desafios práticos citados pelos depoentes estão disseminados no conjunto dos municípios brasileiros.
O enfrentamento desses desafios será especialmente complexo no contexto da crise econômica e política que o país atravessa. Contudo, dado que toda crise tem sempre uma dimensão de oportunidade, este pode ser o momento adequado para uma avaliação mais profunda da situação das políticas socioassistenciais nos pequenos e médios municípios, e das estratégias que devem ser priorizadas para que essas políticas possam de fato contribuir para a redução das desigualdades no Brasil.