Fabio Ribas
18/01/2016
O livro “Projetos bem-sucedidos de educação em valores” (organizado por Maria Suzana Menin, Patricia Bataglia e Juliana Zechi, publicado pela Cortez Editora em 2013) relata treze experiências escolares que, segundo as organizadoras, são exemplos “originais e consistentes de transmissão, construção e prática de princípios, valores, normas e regras que orientem as pessoas a viverem o mais harmonicamente possível consigo mesmas e com os demais e dentro do que normalmente se considera na cultura como justo, bom, correto”.
Para a escolha dessas experiências as organizadoras se basearam nos dados de uma pesquisa realizada em 2008 pelo Grupo de Trabalho “Psicologia da Moralidade”, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Psicologia, junto a 1.062 escolas públicas de 24 Estados da Federação. Essa pesquisa revelou que 92% dos entrevistados eram favoráveis a que sua escola ofertasse educação moral para os alunos e que 72% deles já haviam participado de alguma experiência nesse sentido do ano 2000 em diante. Dentre estes últimos, 60% afirmaram que a realização das experiências foi provocada pela comunidade externa e 94% deles avaliaram a experiência como bem-sucedida. Contudo, a análise dessas experiências, efetuada pela equipe de pesquisadores, revelou que, quando avaliadas à luz de critérios estabelecidos pela literatura existente sobre educação e valores morais, apenas 5% das experiências identificadas poderiam, de fato, ser consideradas como bem- sucedidas. As demais 95% foram reconhecidas pelos pesquisadores como “iniciativas isoladas, sem finalidades morais claras, voltadas mais ao controle disciplinar do que à construção de valores, e baseadas na transmissão verbal ou mesmo na imposição de valores.”
Com base nesse amplo levantamento, as organizadoras do livro “Projetos bem-sucedidos de educação em valores” buscaram selecionar experiências nas quais:
– A educação moral não se limitasse à oferta de uma disciplina específica, mas abrangesse o maior número de espaços, membros da escola e membros da comunidade local;
– Os alunos participassem de atividades de discussão e construção de regras morais;
– Fossem adotadas metodologias baseadas no diálogo, na participação e no respeito;
– Fossem colocados em prática procedimentos democráticos e estratégias voltadas à formação de indivíduos autônomos.
As treze experiências descritas no livro abarcam temas como respeito, cooperação, justiça, solidariedade, cidadania, preservação ambiental, prevenção do bullying e de outras formas de violência escolar, entre outros.
Um exemplo é o “Projeto Conviver”, desenvolvido pela Escola Estadual Walter Negrelli, situada em Osasco (SP). Criado há mais de uma década, o projeto tem como objetivo “instrumentalizar os alunos para, através do diálogo, solucionar, dentro da escola, conflitos provenientes das diferenças sociais, individuais e culturais”. Situada em uma região vulnerável e marcada por forte diversidade social, a escola passou a sentir mais fortemente conflitos e violências na década de 1990, quando cresceu o tráfico de drogas em suas imediações. Desde então passou a mobilizar a comunidade local para enfrentamento do problema, mas as violências persistiam e repercutiam no espaço escolar.
O “Projeto Conviver” nasceu do reconhecimento, por parte da escola, da necessidade de uma ação mais estruturada e diversificada de educação em valores. Gradativamente foram sendo inseridas no currículo escolar atividades como: análise da ocupação do espaço urbano nos bairros vizinhos; envolvimento dos alunos na discussão e reflexão sobre as normas sociais; mobilização para o envolvimento integral dos professores nas atividades do projeto; mapeamento das dificuldades de cada sala de aula e mobilização dos alunos para a busca de soluções para essas dificuldades; criação conjunta de projetos de interesse dos alunos, focados em temas como drogas, gravidez na adolescência, etc. Um ponto de destaque é o fato de que a diretora da escola (que liderou a criação do projeto em 2001), ocupava esse cargo até o momento em que a experiência foi descrita (2013). Nas palavras dessa diretora: “Quando construímos um projeto para resolver conflitos não imaginávamos o seu alcance. Não tínhamos clareza da intensidade da força das relações na construção da aprendizagem. Não imaginávamos também que ao enfocar valores, revisamos nossa própria vida”.
A importância de experiências consistentes de educação em valores para a vida prática dos alunos transparece neste depoimento de um aluno participante do projeto “Ética, cidadania e política: o voto consciente”, desenvolvido no Colégio Estadual Joaquim Gomes Crespo, situado em São Francisco de Itabapoana (RJ): “A gente foi aprendendo na prática. [O projeto] é muito interessante para moldar o caráter do aluno, para aprenderem a viver mesmo e não só aprender Matemática e Português.” Vale destacar que esse projeto tomou como tema a discussão de manipulações das eleições e compras de votos, verificadas há anos no município e que eram do conhecimento dos próprios alunos.
Avanços e limites das experiências
No capítulo final do livro, dedicado a um balanço geral das lições das treze experiências, as organizadoras destacam os aspectos positivos e os limites das treze experiências.
No que se refere aos pontos positivos destaca-se o fato de que, nas experiências relatadas, as escolas, de alguma maneira, assumiram como sua a tarefa de educação em valores, sem delegar tal função a outras instituições como a família ou a igreja.
Outro aspecto positivo é a concentração dos projetos em temas e problemas do cotidiano escolar e das comunidades locais, reconhecidos como relevantes pelos alunos, e não em questões que, embora pertinentes, fossem definidas externamente e apresentadas de forma um tanto artificial aos alunos. As organizadoras do livro destacam que as experiências bem-sucedidas souberam evitar “modismos ou campanhas temporárias”. Ao contrário, buscaram “tomar como fonte de inspiração crises de valores que acometem a todos” e “envolver a comunidade e as famílias como parceiros dos projetos e seus incentivadores”.
As organizadoras destacam, como traço especialmente positivo, o fato de que os projetos expressam uma visão consistente do processo de construção autônoma de valores morais, sem confundi-lo com a assimilação irrefletida de normas ou regras de conduta, que pode gerar atitudes autoritárias ou reações de obediência a uma autoridade imposta aos alunos. Voltados ao fortalecimento da autonomia moral dos alunos, esses projetos adotaram métodos participativos e democráticos tais como discussões coletivas, assembleias, estudos sobre a comunidade e outros meios que permitem o reconhecimento da diversidade de pontos de vista.
Quanto às limitações, foi identificada a existência de certo casuísmo ou falta de institucionalidade nas experiências, o que é revelado pelas formas como elas foram geradas e desenvolvidas: em algumas escolas a iniciativa partiu do diretor, foi incluída no projeto pedagógico escolar e desdobrou-se ao longo dos anos, consolidando sua identidade (como no caso do “Projeto Conviver”); em outros, partiu de um professor ou coordenador da escola, desenvolveu-se no espaço específico de uma disciplina e, à medida que foi contagiando os alunos, tornou-se um projeto transversal, embora informal e sem clara integração no projeto pedagógico da escola.
Ficou claro também que, a despeito de sua consistência pedagógica, as experiências têm dificuldade em se manter quando o vínculo dos professores com a escola não é permanente, quando há alta rotatividade de pessoal e quando as condições de trabalho dos profissionais da educação são precárias.
As organizadoras do livro ressaltam ainda que, por ter sua execução muitas vezes limitada a uma parcela dos profissionais da escola, alguns projetos de educação em valores convivem com normas presentes na escola que contradizem a filosofia e as práticas do projeto. De fato, por mais que se possa tirar algum proveito pedagógico da existência da diversidade de posturas éticas no interior da escola, tal situação pode fragilizar o projeto, limitando-o à condição de atividade paralela ou extraescolar, ou favorecendo sua descontinuidade. Um exemplo do conflito entre projetos de educação em valores e outras visões presentes na escola é o fato de que para alguns membros da comunidade escolar as atividades desses projetos podem tomar o tempo de outras que seriam mais importantes, tais como o ensino de conteúdos necessários ao bom desempenho dos alunos no vestibular.
Em suma, o livro apresenta um painel de questões e alternativas de ação que podem orientar escolas e educadores no planejamento e implantação de ações voltadas ao desenvolvimento ético de crianças e adolescentes.
Caminhos para a disseminação das experiências bem-sucedidas
O desenvolvimento ético das crianças e adolescentes é um tema não poderia ser mais relevante neste momento em que o Brasil atravessa uma crise ética e política, e em que se observa o crescimento de violências que afetam a sociedade como um todo, inclusive as crianças e adolescentes. Apenas para citar um dado recente, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ) no ano de 2015 o município do Rio de Janeiro registrou 10.262 encaminhamentos de adolescentes ao sistema socioeducacional por envolvimento com atos infracionais. Para enfrentar as raízes desse problema é preciso que experiências como as descritas no livro “Projetos bem-sucedidos de educação em valores” possam ser disseminadas nas redes escolares. Mas como avançar nessa direção? Como transitar de projetos específicos bem-sucedidos para redes escolares bem-sucedidas na promoção do desenvolvimento ético dos alunos?
Entre os princípios que orientam o Plano Nacional de Educação para o período 2014-2024 figura a seguinte diretriz: “formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade” (artigo 2o, inciso V).
Os Parâmetros Curriculares Nacionais atualmente vigentes destacam a ética como tema transversal prioritário para a o desenvolvimento das práticas pedagógicas.
A Base Nacional Comum Curricular, apresentada recentemente pelo Ministério da Educação para discussão nacional, estabelece que a rede de Educação Básica deve oferecer aos estudantes “percursos de aprendizagem” que lhes permitam “participar ativamente da vida social, cultural e política, de forma solidária, crítica e propositiva, reconhecendo direitos e deveres, identificando e combatendo injustiças, e se dispondo a enfrentar ou mediar eticamente conflitos de interesse”.
Constata-se assim, uma vez mais, que temas prioritários para o país estão presentes em documentos oficiais que instituem políticas públicas. O desafio, como sempre, está na concretização dos princípios: neste caso, fazer com que Estados e municípios adotem práticas consistentes de educação em valores nas suas redes de ensino.
A disseminação da educação em valores no sistema educacional brasileiro pode ser estimulada pela divulgação de experiências bem-sucedidas como as relatadas no livro organizado por Menin, Bataglia e Zechi. Porém, é pouco provável que a simples divulgação seja suficiente para promover uma ampla multiplicação das experiências.
Em atenção a princípios já estabelecidos nos marcos legais, os órgãos responsáveis pela gestão das redes de ensino têm a obrigação de promover essa disseminação. Para tanto, não basta apenas valorizar esforços isolados de escolas que, pela visão e compromisso ético de alguns educadores, buscam por conta própria suprir essa lacuna na educação brasileira. Os órgãos gestores precisam ir mais além, buscando melhorar a situação de amplas parcelas das redes escolares, cujas condições de funcionamento e de trabalho das equipes não favorecem a disseminação da educação em valores. Precisam apoiar as escolas, ajudando-as a se organizar para que possam oferecer educação em valores de forma emancipatória.
Porém, para que possa ser efetivamente disseminada, a educação em valores precisa ser uma demanda da sociedade. A melhoria da qualidade da educação brasileira vem sendo defendida há tempos por especialistas e lideranças setoriais, mas desde 2013 tem surgido mais intensamente como demanda de segmentos da população. É muito importante que organizações da sociedade civil, familiares e os próprios alunos se mobilizem com postura democrática para reivindicar a melhoria das condições de funcionamento das escolas e, simultaneamente, a disseminação da educação em valores nas redes escolares do país.
A recente ocupação de escolas públicas por alunos na cidade de São Paulo pode ser vista como um exemplo prático de educação em valores, estimulado não por uma prática pedagógica planejada para promover a educação moral, mas pela falta de diálogo entre os gestores públicos e a população sobre a condução da política educacional. Segundo o editorial do jornal Folha de São Paulo, de 07/01/2016, “os alunos expressaram comprometimento para com seu local de estudo. Aprenderam a se organizar e a ter voz ativa na sociedade; cresceram. Saem vitoriosos, e com eles a cultura democrática do país.”