As escolas e a formação das crianças e jovens para a democracia

24/03/2016
Fabio Ribas

Tudo o que acontece nas escolas – não só as atividades curriculares formais, mas o conjunto das relações que se estabelecem entre os membros da comunidade escolar e entre os integrantes da escola e a comunidade externa – contribui para a internalização, consciente ou inconsciente, de valores nos alunos, entre os quais os valores morais que orientam a vida em sociedade.

A importância da disseminação de uma educação orientada por valores éticos universais torna-se especialmente clara em tempos de crise como o que vive atualmente o Brasil. A intensificação de fenômenos como a violência, a corrupção no uso do dinheiro público, o descontentamento e descrença da população em relação aos  partidos políticos e a uma parte importante dos poderes da República, reforçam a importância do fortalecimento das instituições democráticas – um objetivo cujo alcance pode ser favorecido, a médio e longo prazo, se as escolas e instituições educativas assumirem como objetivo prioritário a formação das crianças e jovens para a participação democrática nas questões de interesse coletivo.

Como integrantes da sociedade, é natural que as escolas também sejam afetadas negativamente por uma crise que, vale frisar, não nasceu agora. Há muitos anos diversos estudos vêm apontando o crescimento das incivilidades e das violências no interior das escolas – fenômenos que indicam a fragilização da educação para cumprimento de um papel que a ela sempre foi atribuído pelas principais teorias pedagógicas de teor progressista: a formação dos alunos para o exercício da cidadania. O mais recente estudo sobre violências nas escolas, realizado em parceria pela FLACSO, MEC e OEI junto a 6.700 alunos de escolas públicas de sete capitais brasileiras, revelou que 42% deles já foram agredidos na escola, 22% já viram armas dentro da escola, 15% dizem que já cometeram alguma violência contra colegas e 9% souberam de assassinatos nos arredores da escola. O estudo também aponta que em 15% dos casos os autores das violências são os professores.

Com efeito, esta é, hoje, uma questão crítica sobre a situação das escolas: estão elas apenas tendendo a reproduzir, de forma relativamente passiva, as relações de violência e descompromisso moral presentes na sociedade, ou estão promovendo o desenvolvimento, nos alunos, de valores e atitudes sobre os quais repousa a vida em democracia, tais como o respeito à diversidade e às diferenças de opinião, o uso do diálogo para lidar com conflitos, a compreensão dos fatores que geram a desigualdade social e o posicionamento ativo na busca de uma sociedade mais justa e mais capaz de oferecer oportunidades de desenvolvimento para todos?

O estudo “Avaliando valores em escolares e seus professores”, realizado sob a coordenação de Marialva Rossi Tavares e Maria Suzana de Stefano Menin, publicado em 2015 pela Fundação Carlos Chagas, apresenta especial interesse exatamente porque buscou avaliar em que medida alunos e professores de escolas públicas de educação básica estariam aderindo a valores sociomorais tais como a convivência democrática.

Na introdução do estudo as autoras destacam o atual desafio das escolas no que se refere a educação em valores: por um lado, os professores reconhecem que as escolas precisam assumir esse papel, visto que as famílias têm cada vez mais apresentado dificuldades em fazê-lo; por outro lado, esses mesmos professores apontam como dificuldades crescentes para assumir essa função “a indisciplina, a incivilidade e a violência dos alunos, em um ambiente em que o desrespeito parece imperar”.

O estudo se baseou em um conceito de valor derivado da filosofia de Kant, assumido posteriormente por Piaget, segundo o qual os melhores valores são aqueles que as pessoas consideram como válidos não apenas para si próprias mas para todos, e que se apresentam como princípios universais capazes de garantir a dignidade de todos.

O estudo focalizou quatro valores básicos: justiça, respeito, solidariedade e convivência democrática. Para aferir o posicionamento dos alunos e professores em relação a cada um deles, foi construído um questionário contendo várias pequenas histórias envolvendo situações-problema que podem ocorrer em diferentes espaços sociais frequentados pelas crianças, jovens e seus professores, inclusive a própria escola. Em cada história, alunos e professores deveriam escolher uma entre cinco alternativas que expressavam diferentes atitudes que poderiam ser tomadas diante da situação em questão, sendo que cada alternativa traduzia um tipo de posicionamento possível na escala dos valores sociomorais, variando desde uma atitude contrária a um valor universal ou egocêntrica, até uma atitude que expressa um posicionamento moral ancorado em um valor universal. Por exemplo, numa história em que o valor em questão era a convivência democrática (tal como a ocorrência de bullying na escola contra um aluno que, tendo sofrido violências praticadas pelos colegas, passa a não querer mais frequentar as aulas), as alternativas variavam desde uma postura de omissão ou de transferência da solução para terceiros, até uma atitude pessoal de busca do diálogo com os envolvidos para reparação de danos causados ao aluno que sofreu o bullying e restauração da convivência respeitosa no interior da escola.

O estudo foi feito junto a 4.000 crianças do 5º ao 8º ano do Ensino Fundamental, 3.805 adolescentes do 9º ano do Ensino Fundamental e do 1º ao 3º ano do Ensino Médio, e 1.315 professores, de escolas públicas e particulares, sendo a maioria destas situadas no Estado de São Paulo.

Os resultados apontaram que, dos quatro valores básicos analisados, a “convivência democrática” foi o único valor ao qual nenhum aluno ou professor do grupo pesquisado demonstrou um nível evoluído de adesão, ou seja, uma atitude caracterizada pelo repúdio à manipulação das pessoas, pela valorização da equidade e pela busca do diálogo como meio de resolução de conflitos. Entre as conclusões do estudo, as pesquisadoras afirmam que “os valores de justiça e convivência democrática foram mais difíceis de serem desenvolvidos na população estudada, mostrando quão pouco são experienciados no cotidiano da vida, seja na escola ou fora dela.

Outro estudo realizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Psicologia, junto a educadores de 1.062 escolas públicas de 24 Estados da Federação, revelou que 72% deles já participaram de alguma experiência voltada à educação moral dos alunos. Porém a análise dessas experiências, efetuada pela equipe de pesquisadores, revelou que, quando avaliadas à luz de critérios estabelecidos pela literatura existente sobre educação e valores morais, apenas 5% das experiências identificadas poderiam, de fato, ser consideradas como bem-sucedidas. As demais 95% foram avaliadas pelos pesquisadores como “iniciativas isoladas, sem finalidades morais claras, voltadas mais ao controle disciplinar do que à construção de valores, e baseadas na transmissão verbal ou mesmo na imposição de valores.”

Esses dados se somam aos achados da recente pesquisa da Fundação Carlos Chagas, deixando claro que a maioria das escolas precisa repensar suas práticas educativas e suas formas de funcionamento para que possam evoluir na área da educação em valores.

Caminhos possíveis

O conceito de educação integral pode ajudar na busca de caminhos para o fortalecimento da educação em valores. As práticas de educação integral que vêm sendo desenvolvidas por um número crescente de escolas e de instituições que operam programas sociais no contraturno escolar buscam ampliar o universo de vivências formadoras e de oportunidades de desenvolvimento das crianças e jovens. É de todo recomendável que essas práticas priorizem vivências e experiências que propiciem o aprendizado do exercício democrático da cidadania.

Certamente não se trata apenas de incluir a cidadania e a prática da democracia entre os conteúdos a serem apresentados de forma tradicional aos alunos. Isto pode ser feito, mas é importante que sejam exploradas as diversas possibilidades de envolvimento das crianças e jovens em atividades que propiciem a construção de normas de convivência, a interação com posições e ideias divergentes, o diálogo como forma de lidar com conflitos e de buscar a formação de consensos, a formulação de projetos que atendam a interesses coletivos, etc. A vivência de atividades dessa natureza facilitará a internalização de conceitos como cidadania e democracia, que poderão aprofundados por exemplo em atividades curriculares associadas à história, à geografia, à língua portuguesa, etc.

A vida cotidiana nas escolas enseja diversas oportunidades para a educação das crianças e jovens para a democracia. A organização dos alunos em grêmios escolares pode promover o aprendizado da representação e da deliberação sobre questões do seu interesse e do interesse da escola. Os cuidados com o ambiente escolar, sua preservação como patrimônio coletivo (no caso das escolas públicas), as relações que a escola estabelece com a comunidade do entorno, certamente evocam questões que podem dar margem a estudos ou intervenções didaticamente orientadas por parte dos alunos.

O envolvimento dos alunos em projetos de estudo sobre questões do interesse da comunidade em que a escola está situada pode ajudá-los a compreender as causas de diferentes problemas sociais e o papel das políticas públicas no atendimento às necessidades e aos direitos da população.

Outra possibilidade de promoção da participação cidadã dos alunos seria o seu envolvimento no Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Esse programa consiste na destinação anual, pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), de recursos financeiros, em caráter suplementar, a escolas públicas e escolas privadas de educação especial que possuam alunos matriculados na educação básica. O objetivo do PDDE, tal como explicitado na Resolução nº 10, de 18 de abril de 2013, do Ministério da Educação, é “contribuir para o provimento das necessidades prioritárias dos estabelecimentos educacionais beneficiários que concorram para a garantia de seu funcionamento e para a promoção de melhorias em sua infraestrutura física e pedagógica, bem como incentivar a autogestão escolar e o exercício da cidadania com a participação da comunidade no controle social” (grifo nosso). Ou seja, reiterando uma tendência presente em diversos marcos reguladores de políticas públicas brasileiras, as normas do PDDE preveem a possibilidade de controle e participação social da população na gestão de recursos destinados às escolas. O desafio, como sempre, está na concretização prática dessas normas. Alunos, professores e familiares podem ser envolvidos no processo de definição dos recursos que suas escolas recebem do PDDE, vivenciando experiências importantes no âmbito da deliberação quanto ao uso de recursos públicos para a melhoria do funcionamento das escolas.

Escolas preocupadas com a formação dos alunos para a vida em democracia também devem valorizar mecanismos de gestão democrática da própria instituição escolar, tais como as Associações de Pais, Mestres e Funcionários (APMF). Sendo órgãos de representação sem caráter político partidário, as APMFs têm importante papel a desempenhar no apoio aos alunos, professores e funcionários, e na formação de relações baseadas no diálogo e na preservação da convivência democrática no interior das escolas e nas relações escola-comunidade.

Esses são apenas alguns exemplos de atividades e mecanismos que podem promover uma educação sociomoral comprometida com a formação das crianças e jovens para o exercício da cidadania democrática, associada ao funcionamento democrático das escolas. Certamente há muitas outras oportunidades a explorar.

A crise que atinge a sociedade brasileira demonstra que nossos desafios educacionais não se limitam à ampliação da inclusão escolar ou dos anos de escolaridade da população. Como indicado em estudo realizado por Rogerio Schlegel (publicado no livro “A desconfiança política e seus impactos na qualidade da democracia”, organizado por José Álvaro Moisés e Raquel Meneguello, publicado em 2013 pela Editora da Universidade de São Paulo), o aumento da instrução formal da população brasileira, verificado nas últimas décadas, “não aparece associado de forma inequívoca a comportamentos políticos desejáveis [dessa mesma população] para a convivência democrática.” Para o autor, um dos fatores que explicam essa ausência de correlação entre a elevação da escolaridade e o fortalecimento da participação democrática das pessoas é a queda na qualidade do ensino e a consequente dificuldade das escolas para promover o desenvolvimento de capacidades cognitivas e conhecimentos que são fundamentais para a vivência política. Essas indicações reforçam a ideia de que a mudança na educação precisa incluir uma reorganização profunda das práticas de ensino e de convivência nas escolas, tendo em vista o desenvolvimento de capacidades das crianças e jovens para a vida em democracia.

Acesse aqui o texto completo do estudo “Avaliando valores em escolares e seus professores”

Acesse aqui matéria da Folha de São Paulo sobre o estudo da FLACSO/MEC/OEI acerca de violências nas escolas

Acesse aqui mais informações sobre violências nas escolas e educação integral

Acesse aqui matéria sobre o estudo “Projetos bem-sucedidos de educação em valores

Acesse aqui matéria sobre o conceito de educação integral

Acesse aqui a Resolução nº 10, de 18 de abril de 2013, do Ministério da Educação, sobre o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE)