Artigo: A adoção do ponto de vista de crianças adotadas

Saulo Cunha

 

A adoção é um tema de enorme complexidade. No seu âmago há sempre uma criança ou um adolescente que está vivendo intensamente o sofrimento mais temido pelos humanos: o desamparo.

Sem dúvida, crianças e adolescentes precisam ser protegidos das famílias que as rejeitam, que as maltratam e que não oferecem os cuidados mínimos necessários ao seu desenvolvimento. Isto às vezes significa sua separação das famílias e o seu encaminhamento para abrigos. Nesta situação, os sentimentos de abandono e de desamparo tomam a cena.

No conto Campo Geral, de Guimarães Rosa, há um diálogo do menino Miguilim com seu irmão Dito, que ocorre no quarto, à noite, antes de dormir, que de uma maneira lírica fala da angústia do desamparo. Eis o diálogo: “… Dito, se de repente um dia todos ficassem com raiva de nós – Pai, Mãe, Vovó Izidra – eles podiam mandar a gente embora, no escuro, debaixo da chuva, a gente pequenos, sem saber aonde ir?”. “– Dorme Miguilim. Se você ficar imaginando assim, você sonha de pesadelo…”.  “- Dito, vamos ficar nós dois, sempre um junto com o outro, mesmo quando a gente crescer, toda a vida?”. “– Pois vamos.” Eis aqui, deliciosamente expressa, a angústia do desamparo que se manifesta fortemente nas situações de separação da família e de abrigamento.

Para aqueles que estão no abrigo e não têm expectativa de retorno às suas famílias, a adoção surge como uma saída. Os adotantes podem ser brasileiros, mas em último caso, brasileiros residentes no exterior ou mesmo estrangeiros.

Há algum tempo atrás, acompanhei a adoção de quatro irmãos órfãos – duas meninas e dois meninos – por dois casais residentes nas Itália. Um menino e uma menina ficariam com um casal italiano. A outra dupla, com o outro casal. Na ocasião, aproximei-me muito do mais velho dos irmãos, que tomou para si o papel de cuidador dos outros três. Quando ele soube da possibilidade de ir para o estrangeiro, foi tomado por uma imensa angústia. Encontramo-nos algumas vezes antes de os casais italianos chegarem ao Brasil. Nos nossos encontros, esse menino foi falando de suas inquietações, de seus receios, de suas angústias. Logo de saída mostrou grande preocupação com o que seria feito dos restos mortais de seu pai, já que ele não estaria aqui para guardá-los. Mostrou-se preocupado com os casos de adoção que não deram certo e terminaram em devoluções. Se isto ocorresse, o que seria feito dele e de seus irmãos, se estariam em terra estranha? Mostrou-se angustiado com o fato de não conhecer as pessoas, de não saber sua língua, de não saber onde ficava o país para onde iria e como ficaria sua situação na escola estrangeira. Quis saber quem poderia procurar na Itália caso a adoção não desse certo. Ainda mais: estava preocupado com o fato de seus irmãos ficarem separados. Como ficaria sabendo se necessitavam de ajuda?

As angústias desse menino ilustram o que pode ser a situação de adoção para uma criança ou adolescente. De fora, achamos que a criança fica feliz com a possibilidade de ser adotada e torcemos para que isto ocorra. Mas para ela o caminho pode ser sofrido.

No excelente livro “Conversando com Crianças sobre Adoção”, fruto da pesquisa de mestrado “A perspectiva da criança sobre seu processo de adoção”(*), a autora Lilian de Almeida Guimarães apresenta a compreensão e os sentimentos de três crianças adotadas sobre o seu processo de adoção: Billy, com sete anos de idade e  Yasmim e Júlia, irmãs com 6 e 7 anos respectivamente.

Antes de serem adotadas, as três crianças viveram em abrigo, sendo que Billy está na segunda adoção. Quando contava com 3 anos e 11 meses foi colocado em uma família adotante e devolvido para o abrigo um ano e meio depois. Alguns meses após, foi adotado pelo casal com quem vive atualmente.

A perspicácia e delicadeza da autora permitiram que as crianças expusessem suas idéias e sentimentos sobre suas famílias biológicas, os abrigos por onde passaram e suas histórias de adoção. As falas das crianças revelam suas impossibilidades de entender o que de fato lhes aconteceu, suas angústias, suas incertezas e, sobretudo, o grande desejo de fazer parte das famílias que as adotaram.

“Conversando com Crianças sobre Adoção” não é um livro sobre crianças adotadas. É um livro onde essas crianças falam delas mesmas e a autora ajuda o leitor na compreensão do que elas dizem.

 

Conversando com Crianças sobre Adoção
Autora: Lilian de Almeida Guimarães
Editora: Casa do Psicólogo


(*) Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP em Junho de 2006.