A Lei 13.019/2014 e a gestão dos Fundos da Criança e do Adolescente e dos Fundos do Idoso

Fabio Ribas
24/05/2016

A Lei Federal 13.019/2014, conhecida como “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil”, estabeleceu um conjunto de regras para a transferência de recursos financeiros entre a administração pública e as organizações da sociedade civil, e para o controle e monitoramento do uso desses recursos. Essa lei tem sido saudada como avanço positivo no estabelecimento de relações mais transparentes entre governo e sociedade civil num tema de importância crescente: o uso de recursos públicos por organizações privadas que realizam ações de interesse social. A regulamentação da lei, que estava sendo aguardada pelas organizações do terceiro setor, acaba de ser efetivada pelo Governo Federal por meio do Decreto 8.726, de 27/04/2016.

O presente texto procura destacar aspectos relevantes e implicações da Lei 13.019/2014 e do Decreto 8.726/2016 para a gestão dos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente e dos Fundos dos Direitos do Idoso. Parte significativa dos recursos que adentram nesses Fundos é transferida, por deliberação dos Conselhos de Direitos responsáveis por sua gestão, para organizações da sociedade civil que operam serviços e programas de atendimento de crianças, adolescentes e idosos. Essas transferências também passam a ser reguladas pela nova lei, que incluiu entre as parcerias aquelas “financiadas com recursos de fundos específicos”. O decreto que regulamentou a lei menciona explicitamente os Fundos da Criança e do Adolescente e os Fundos do Idoso.

Validade para os entes federados

O artigo 2º, inciso II, da Lei 13.019/2014 define como administração pública a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, além de outras instituições públicas estatais. Assim, as normas dessa lei aplicam-se às transferências, para organizações não governamentais, de recursos alocados nos Fundos dos Direitos da Criança e do Adolescente e nos Fundos dos Direitos do Idoso da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Já o Decreto 8.726/2016 estabelece regras para as transferências que forem efetuadas especificamente pela “administração pública federal”. Assim, parece válido supor que os Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente, assim como seus correlatos na área do Idoso, juntamente com os órgãos públicos estaduais e municipais que os apoiam na gestão administrativa e contábil dos Fundos, devem avaliar em que medida as regras do Decreto 8.726/2016 podem orientar as transferências que vierem realizar. Por seu turno, os governos estaduais e municipais podem, no exercício das autonomia que a legislação lhes confere, estabelecer normas locais referentes ao tema. Por exemplo, o governo do Estado de São Paulo criou o Decreto 61.981/2016 que dispõe sobre a aplicação da Lei 13.019/2016 no âmbito desse Estado.

Chamamento público e modalidades de parceria

A Lei 13.019/2014 instituiu o “chamamento público”, definido no artigo 2º, inciso XII, como “procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”.

O artigo 8º, § 2º do Decreto 8.726 estabelece que, no caso de transferências do Fundo da Criança e do Adolescente e do Fundo do Idoso, o chamamento público das organizações “poderá ser realizado pelos respectivos conselhos gestores, conforme legislação específica, respeitadas as exigências da Lei 13.019”.

Muitos Conselhos da Criança e do Adolescente e Conselhos do Idoso já fazem chamamentos públicos, via de regra por meio de editais que solicitam às organizações sociais locais a apresentação de propostas de ação que possam ser apoiadas com transferências de recursos dos respectivos Fundos. Esses editais têm apresentado perfis bastante variados. Alguns estabelecem prioridades ou temas que devam ser focalizados pelas organizações sociais na proposição de projetos; outros abrem a possibilidade de inscrição de projetos que sejam do interesse das organizações e que serão posteriormente avaliados pelos Conselhos de Direitos. O grau de detalhamento dos editais no que se refere aos fundamentos, critérios e orientações para formulação das propostas também é bastante variado.

Esses editais deverão ser reorganizados pelos Conselhos com base na Lei 13.019/2014, que estabelece três modalidades básicas de parceria: 1) colaboração; 2) fomento; 3) acordo de cooperação. Apenas as duas primeiras modalidades envolvem a transferência de recursos financeiros.

O artigo 16 da lei estabelece que “o termo de colaboração deve ser adotado pela administração pública para consecução de planos de trabalho de sua iniciativa, para celebração de parcerias com organizações da sociedade civil que envolvam a transferência de recursos financeiros”. Nesses casos é o próprio Conselho de Direitos (da Criança e do Adolescente ou do Idoso) que deve estabelecer com clareza o objetivo e a natureza da ação a ser desenvolvida com os recursos que serão transferidos à organização social que vier a ser escolhida para a execução da ação. A expressão “plano de trabalho” não pode ser entendida como simples indicação de um tema que, por mais relevante que seja, possa ser resumido em poucas palavras (por exemplo, “enfrentamento do trabalho infantil”, ou “criação de centro de saúde do idoso”), mas pressupõe um detalhamento da justificativa da ação, do objetivo a ser buscado, do território a ser alcançado, do público a ser atendido, do tipo de serviço ou programa de atendimento a ser implementado e do resultado a ser alcançado junto ao público. A responsabilidade pela formulação dessas referências e orientações para que propostas de ação sejam apresentadas pelas organizações da sociedade civil é dos Conselhos de Direitos.

Já o artigo 17 da Lei 13.019/2014 estabelece que “o termo de fomento deve ser adotado pela administração pública para consecução de planos de trabalho propostos por organizações da sociedade civil que envolvam a transferência de recursos financeiros”. Neste caso, a iniciativa passa a ser das próprias organizações sociais, cabendo aos Conselhos avaliar, com base em reconhecimento prévio das necessidades e prioridades de suas localidades, a relevância e a consistência dessas propostas, e a possibilidade de que venham a ser apoiadas mediante termo de fomento.

Cabe destacar que a Lei 13.019/2014 excluiu o “convênio” como mecanismo de celebração de parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. Esse instrumento passa a ser admitido somente no caso de parcerias com organizações filantrópicas que prestam serviços no âmbito do SUS.

Dispensa de chamamento público

A Lei 13.019/2014 define situações em que o chamamento público poderá ser dispensado ou será inexigível. Duas delas merecem destaque por sua relevância para a gestão dos Fundos da Criança e do Adolescente e dos Fundos do Idoso.

A primeira é descrita no artigo 30, inciso III: “quando se tratar da realização de programa de proteção a pessoas ameaçadas ou em situação que possa comprometer a sua segurança”.

Na área da proteção das crianças e adolescentes, podem ser enquadradas nesse inciso ações como as previstas no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte – PPCAMM (instituído pelo Decreto 6.231/2007), voltadas à proteção de adolescentes que tiveram algum tipo de envolvimento com o tráfico de drogas e que se encontram ameaçados por traficantes. Outros exemplos de ações que se enquadrariam no referido inciso seriam a proteção de crianças ou adolescentes que estejam sofrendo violências por parte de familiares, e que precisem ser afastadas de forma temporária ou definitiva de suas famílias por decisão judicial; ou a remoção de crianças e adolescentes envolvidos nas chamadas piores formas de trabalho infantojuvenil, tais como atividades industriais insalubres que trazem riscos graves à saúde e à integridade física e mental, ou atividades de exploração sexual comercial ou de aliciamento de crianças e adolescentes para produção ou tráfico de drogas.

Na área da proteção das pessoas idosas, podem ser enquadradas no referido inciso ações como a defesa e o acolhimento de idosos cuja segurança e saúde estejam sendo postas em grave risco em virtude de maus tratos, violência física ou abandono por parte de familiares.

Uma segunda hipótese de dispensa do chamamento público é descrita no artigo 31 da Lei 13.019: quando houver “inviabilidade de competição entre as organizações da sociedade civil, em razão da natureza singular do objeto da parceria ou se as metas somente puderem ser atingidas por uma entidade específica”.

De fato, há problemas cuja natureza e especificidade exigem formas de atendimento que podem ser prestados por um número reduzido de organizações. Um exemplo seria o atendimento especializado de adolescentes que, tendo sofrido ou praticado violências, não aderem a programas sociais existentes na maioria dos municípios e precisam ser atendidos de forma não convencional e individualizada para que possam estabelecer novos vínculos que os auxiliem a reconstruir relações de convivência com seus familiares e com a comunidade em que vivem. Se num dado município esse tipo de atendimento for considerado prioritário pelo Conselho da Criança e do Adolescente, e se ali existir apenas uma organização (adequadamente reconhecida e avaliada pelo Conselho) que possa oferecê-lo, o chamamento será inexigível com base no artigo citado. Outra situação, comum em muitos municípios brasileiros de pequeno porte, que justificaria a inexigibilidade de chamamento, é existência de uma única organização social que possua estatuto jurídico e condições operacionais para oferecer serviços priorizados pelo Conselho de Direitos. Um exemplo na área do envelhecimento seria a criação do Centro Dia do Idoso, um serviço cuja implantação e operação precisa ser conduzida por organização com perfil e qualificação diferenciados.

Critérios para que as organizações sociais possam celebrar parcerias

A Seção IX da Lei 13.019/2014 detalha requisitos para que as organizações sociais possam celebrar parcerias, tais como: tempo mínimo de existência com CNPJ ativo (no caso dos municípios esse tempo é de um ano, admitida redução de prazo por ato específico do ente municipal na hipótese de nenhuma organização atingi-lo); experiência prévia na realização, com efetividade, de ações na área relativa ao objeto da parceria; certidões de regularidade fiscal, previdenciária, tributária, de contribuições e de dívida ativa, de acordo com a legislação aplicável de cada ente federado; adoção de normas de escrituração consistentes com os princípios fundamentais de contabilidade e com as Normas Brasileiras de Contabilidade.

Entre os critérios para a celebração de parcerias estabelecidos no Decreto 8.726/2016 (Seção II), está incluída a apresentação de um plano de trabalho pela organização selecionada, que detalhe, entre outros aspectos, a forma pela qual as ações e metas serão efetivadas no território em que o projeto será desenvolvido; a forma de execução das ações, indicando as que eventualmente demandem atuação em rede; a descrição das metas a serem alcançadas, bem como dos indicadores para sua aferição; a previsão detalhada de receitas e despesas a serem realizadas na execução das ações, incluindo os encargos sociais e trabalhistas e os custos indiretos. Vale recordar que o Decreto 8.726 refere-se às parcerias entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil. No entanto, nada impede que conselhos e entes públicos estaduais e municipais inspirem-se nesta e em outras normas do decreto para organizar seus editais e processos de seleção e celebração de parcerias.

Diagnósticos e planos locais: condição para uma adequada fundamentação do processo de chamamento e seleção

Para que possam organizar chamamentos públicos e exercitar de forma consistente seu papel deliberativo acerca das transferências de recursos dos Fundos para organizações locais, os Conselhos da Criança e do Adolescente e os Conselhos do Idoso devem dispor de diagnósticos locais, periodicamente atualizados, que embasem a definição de prioridades e planos de aplicação dos recursos dos Fundos Municipais e Estaduais.

Somente assim os Conselhos poderão atender uma norma como a estabelecida no artigo 9º, § 7º, do Decreto 8.726/2016, segundo o qual “o edital de chamamento público deverá conter dados e informações sobre a política, o plano, o programa ou a ação em que se insira a parceria para orientar a elaboração das metas e indicadores da proposta pela organização da sociedade civil”.

Os Fundos e a previsão de recursos nas Leis Orçamentárias

O artigo 24 do Decreto 8.726/2016 estabelece que “a celebração do termo de fomento ou do termo de colaboração depende da indicação expressa de prévia dotação orçamentária para execução da parceria”.

Esse artigo ressalta a necessidade de que as informações sobre previsão de ingresso ou crédito de recursos nos Fundos da Criança e do Adolescente e nos Fundos do Idoso sejam devidamente encaminhadas, pelos respectivos Conselhos e pelos órgãos públicos aos quais os Conselhos estão vinculados para fins administrativos, para inclusão na Lei Orçamentária do ente federado em questão.

Esse encaminhamento não deve ser feito de forma genérica, mas sim com claro detalhamento dos programas de ação que deverão ser custeados com recursos dos Fundos e dos orçamentos necessários à sua execução.

Nesse sentido, cabe lembrar que a principal fonte de recursos desses Fundos tem sido as destinações dedutíveis do imposto de renda devido, previstas em lei, que são efetuadas por empresas ou pessoas físicas. Essas destinações podem acontecer em qualquer momento de cada ano. Porém, tendem a ser mais volumosas no final do ano, quando a maioria das empresas que apuram seu imposto de renda com base no lucro real tem melhores condições de estimar o valor que poderá ser destinado aos Fundos, tendo em vista o limite de dedução previsto em lei. O mesmo é válido para as pessoas físicas que declaram imposto de renda pelo modelo completo de declaração, embora recentemente a legislação tenha sido alterada para permitir que, no caso das doações de pessoas físicas aos Fundos da Criança e do Adolescente, uma parcela das doações dedutíveis possa ser efetuada no ato da declaração do imposto (até o último dia útil do mês de abril).

Isto faz com que, na maioria Estados e Municípios, e mesmo na União, os Conselhos da Criança e do Adolescente e os Conselhos do Idoso tenham dificuldade para prever os valores que ingressarão nos Fundos a cada ano. Essa dificuldade é tanto maior nos casos (ainda muito frequentes) de Conselhos que adotam postura relativamente passiva em relação à gestão do Fundo, não realizando avaliações sobre o potencial de destinação incentivada em suas localidades e não atuando de forma proativa para mobilizar recursos para os Fundos junto às empresas e pessoas físicas que podem efetuar destinações dedutíveis do imposto de renda. Conselhos que começam a adotar estratégias nesse sentido tendem gradualmente a se tornar mais capazes de mobilizar recursos e de prever ingressos nos Fundos.

Dispondo previamente de prioridades definidas e de previsões orçamentárias para a concretização dessas prioridades, os Conselhos poderão solicitar ao Poder Executivo que inclua essas previsões nas Leis Orçamentárias Anuais, o que dará a devida consistência jurídica e técnica à realização dos chamamentos públicos para parcerias que envolvam transferências de recursos dos Fundos da Criança e do Adolescente e dos Fundos do Idoso. Como estabelece o artigo 9º, Inciso IX, § 1º do Decreto 8.726, “nos casos das parcerias com vigência plurianual ou firmadas em exercício financeiro seguinte ao da seleção, o órgão ou a entidade pública federal indicará a previsão dos créditos necessários para garantir a execução das parcerias nos orçamentos dos exercícios seguintes”.

Cabe destacar que o período adequado para que essa solicitação seja feita é aquele em que o Projeto de Lei Orçamentária estiver sendo formulado pelo Poder Executivo para encaminhamento e apreciação pelo Poder Legislativo.

As transferências de recursos dos Fundos devem estar previstas nas Leis Orçamentárias dos respectivos entes federados, seja como previsão previamente aprovada na Lei Orçamentária, seja como crédito adicional posteriormente autorizado. A falta dessa previsão transparente nas Leis Orçamentárias tem gerado atrasos e dúvidas entre ordenadores de despesa de Estados e Municípios para a efetivação de transferências de recursos para organizações sociais, comprometendo o atendimento do público que deve ser beneficiado pelas ações e gerando dúvidas entre pessoas físicas ou jurídicas que aportaram recursos dos Fundos quanto à consistência desse mecanismo.

Transparência e eficiência no uso de recursos públicos

Estudo realizado pelo Banco Credit Suisse sobre a efetividade dos gastos públicos em diferentes países apontou o Brasil como um dos países com pior colocação nesse aspecto. De fato, um dos principais problemas evidenciados na atual crise econômica e política que o país atravessa é a falta de transparência e a baixa qualidade na gestão de recursos públicos.

A Lei 13.019/2014 e o decreto que a regulamenta representam mais um conjunto de normas que podem ser utilizadas pelos conselhos gestores para fortalecer a transparência e a qualidade no uso de recursos públicos – no caso, recursos alocados nos Fundos da Criança e do Adolescente e nos Fundos do Idoso. Pode-se dizer, uma vez mais, que não faltam no país leis que apontam caminhos para a melhoria da gestão pública; o desafio permanece sendo a concretização e sustentação das mudanças. Neste caso, cabe aos Conselhos da Criança e do Adolescente e aos Conselhos do Idoso, como instâncias de democracia participativa e controle social nas quais a sociedade civil está representada, atuar para que essa mudança da realidade aconteça.

Acesse aqui a Lei 13.019/2014 (com as alterações introduzidas pela Lei 13.024/2015)

Acesse aqui o Decreto 8.726/2016 que regulamenta a Lei 13.019/2014 no que se refere às parcerias celebradas entre a administração pública federal e as organizações da sociedade civil

Acesse aqui o Decreto 61.981/2016 que dispõe sobre a aplicação da Lei 13.019/2016 no Estado de São Paulo.

Acesse aqui matéria da FSP sobre ineficiência nos gastos públicos